A Branchoneta na piscicultura ornamental

Um dos grandes problemas encontrados na produção de peixes ornamentais carnívoros de água doce é a escassa disponibilidade de alimento vivo, de qualidade necessária ao bom desenvolvimento de pós-larvas e alevinos. Entre os alimentos disponíveis, o anostráceo Artemia sp. é o mais utilizado tanto nas larviculturas como nos sistemas de crescimento de peixes e camarões. Porém, além do alto custo deste insumo, os produtores esbarram no fato de que os náuplios da artêmia não resistem por muito tempo quando colocados nas incubadoras, morrendo pouco tempo depois de entrarem em contato com a água doce, se decompondo rapidamente e trazendo não só prejuízos para a qualidade da água, mas também para o bolso do aqüicultor.

Assim, com o objetivo de buscar alternativas para o uso da artêmia na alimentação de larvas de peixes ornamentais carnívoros de água doce, pesquisadores da Estação de Piscicultura de Paulo Afonso – EPPA, na Bahia, pertencente a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco – CHESF vêm, ao longo dos últimos anos, estudando um outro anostráceo – a branchoneta Dendrocephalus brasiliensis, que habita exclusivamente as lagoas temporárias de água doce de diversos estados brasileiros. Neste artigo são apresentados os resultados dos primeiros experimentos de cultivo de apaiari, Astronotus ocelllatus e acará-bandeira, Pterophyllum scalare, alimentados com esse microcrustáceo que já se destaca pelo importante papel que pode desempenhar na piscicultura ornamental.


Por:
José Patrocínio Lopes 
Doutorando em Psicobiologia da UFRN
[email protected]
Cibele Soares Pontes e Arrilton Araújo
Professores do Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da UFRN


A piscicultura ornamental, que dá suporte a aquariofilia, é um ramo da aqüicultura voltado para a criação de peixes destinados ao povoamento de lagos, tanto em recintos fechados como em ambientes externos, a céu aberto, bem como aquários de residências, escritórios e parques, sempre com a finalidade de decorar e embelezar o ambiente onde se encontram (SOUZA, 1996). Não existem dados precisos sobre o volume de negócios que essa atividade movimenta no Brasil. Nos países asiáticos, porém, são muitas as fazendas que se dedicam exclusivamente à produção e exportação de peixes ornamentais, gerando divisas consideráveis no Produto Interno Bruto (PIB) desses países.

O comércio de peixes ornamentais do mundo inteiro propicia o sustento de alguns milhões de pessoas, tanto no mundo industrializado ocidental como também em países tropicais em desenvolvimento.

Um dos maiores problemas encontrados para incrementar a produção de peixes carnívoros ornamentais por meio de cultivo, o que poderia solucionar muitos problemas relacionados com a pesca extrativista, é muitas vezes, a escassa disponibilidade de alimento vivo necessário ao bom desenvolvimento de pós-larvas e alevinos. Em larvas de peixes, o sistema digestório ainda não está formado completamente, e seus sistemas enzimáticos são pouco eficientes. Por conseguinte, é pobre o aproveitamento dos alimentos (SALAZAR et al., 2003), tendo as larvas ainda que se alimentar com partículas de tamanhos adequados contendo elementos nutritivos que garantam um bom desenvolvimento. Normalmente, o início da fase piscívora de peixes carnívoros coincide com a depleção do zooplâncton e outros alimentos naturais, ou ainda, quando o tamanho do alimento natural não mais se adequa às exigências energéticas e preferência alimentar dos juvenis em crescimento. Desenvolve-se então uma forte preferência alimentar por crustáceos e peixes menores, a qual permanecerá por toda vida (LOPES, 1998).

Os Anostráceos: Artêmia e Branchoneta

Amplamente conhecido pelos aqüicultores, o anostráceo Artemia sp., é o alimento vivo mais utilizado, tanto em larviculturas como em sistemas de crescimento de peixes e camarões. Porém, por ser de ambientes hipersalinos, a Artemia sp. quando utilizada na aqüicultura de espécies dulcícolas, apresenta o inconveniente da pouca duração de vida dos náuplios quando colocados em incubadoras ou tanques de larvicultura de peixes ou camarões de água doce. Os náuplios que não são consumidos imediatamente logo morrem e rapidamente se decompõem, deteriorando a qualidade da água de cultivo.
Apesar de ser pouco o que se sabe sobre a biologia e cultivo de outros anostráceos, diversas investigações têm avaliado o potencial dos anostráceos de água doce, demonstrando que possuem alta fecundidade, podendo ser cultivados com êxito sob condições controladas, empregando-se dietas como: microalgas, levedura, aglomerados de bactérias e cianobactérias. Entre esses anostráceos, a branchoneta, Dendrocephalus brasiliensis, habitante de ambientes exclusivamente de água doce, as chamadas lagoas temporárias, vem se mostrando como uma boa dieta para a larvicultura de peixes carnívoros dulcícolas. (ver o box A Branchoneta).

Produção de biomassa

A produção de biomassa de branchonetas é normalmente realizada em viveiros escavados de 2000 m2, com cerca de 0,80 m de profundidade média que, após totalmente secos e limpos, são adubados com esterco bovino na proporção de 150 g/m2.

Esta adubação visa a produção de microalgas que serve como alimento para os náuplios de branchoneta que eclodem nestes ambientes, uma vez tendo sido inoculados. Feita a inoculação em viveiros, que se apresentam semelhantes à lagoas temporárias utilizadas nomalmente por este anostráceo, eles dominam o ambiente (viveiros) e ficam sempre surgindo após novos enchimentos, isto em virtude dos cistos que foram liberados no ambiente. O tempo de cultivo até o início da coleta destes animais é de 15 dias (foto). Na EPPA, a biomassa de branchonetas é capturada em quatro viveiros, em dois períodos do ano (chuvoso e seco).

No período chuvoso, correspondente aos meses de março a agosto para a região de Paulo Afonso, na Bahia, foi colhida para o experimento, uma biomassa média de 30,54±10,09 kg/viveiro/15 dias. No período seco, que correspondeu aos meses de setembro a fevereiro, a colheita foi em média de 21,02±7,91 kg/viveiro/15 dias. A biomassa depois de colhida é acondicionada em sacos plásticos, formando tabletes de 1,0 kg, mantidos em freezer para posterior utilização como alimento para os peixes trabalhados.

Coleta de biomassa de branchoneta em viveiro na EPPA
Coleta de biomassa de branchoneta em viveiro na EPPA

A Branchoneta

Conhecida regionalmente como camarãozinho e brancneque, a branchoneta Dendrocehalus brasiliensis, é um microcrustáceo da família Thamnocephalidae que a partir de 1989, surgiu espontaneamente e em grandes densidades nos viveiros da Estação de Piscicultura de Paulo Afonso-BA. A branchoneta apresenta sexos separados e é de fácil identificação. Possui corpo cilíndrico, sendo que os machos apresentam coloração variando de verde claro a branco, e as fêmeas são um pouco transparente com as caudas avermelhadas. As fêmeas são também, facilmente identificadas, pelo ovissaco com ovos que carregam próximo à cauda e os machos apresentam um apêndice vertical, fundamental para a identificação da espécie. A exemplo da maioria dos anostráceos, a branchoneta quando adulta, pode atingir até 30 mm de comprimento, podendo até ultrapassar esse valor, em condições ambientais bastante favoráveis. Em termos médios, os adultos situam-se em torno de 20 mm. Ao mesmo tempo em que nada, a branchoneta se alimenta do material em suspensão, filtrando bactérias, algas, protozoários, metazoários e restos de matéria orgânica. No entanto, logo fica caracterizada sua tendência fitoplanctônica, uma vez que o zooplâncton praticamente não é consumido. Num curto período de tempo, é capaz de deixar um viveiro bem adubado e rico em fitoplâncton, completamente “limpo”. A espécie possui ainda uma forte tendência à agregação, formando conglomerados, nadando em todas as direções, às vezes no sentido vertical, com cabeça para baixo. Conforme os anostráceos em geral, os cistos das branchonetas são rústicos. Ao se esvaziar a água de um viveiro, os cistos permanecem no fundo durante várias semanas, eclodindo por ocasião do próximo enchimento, uma vez que haja condições ambientais favoráveis. Três dias após o enchimento do viveiro, já é possível observar a ocorrência de pós-larvas. Com uma semana de vida, já se encontram formas jovens de branchoneta. Aproximadamente oito dias após a eclosão, já são adultas e liberam os cistos, que têm cor escura e formato oitavado. Em cada postura, cada fêmea com cerca de 2,5 cm libera uma média de 530 cistos. Trata-se de uma espécie prolífica, reproduzindo continuamente na região de Paulo Afonso durante todo o ano.

 

Uso da branchoneta na piscicultura ornamental

Objetivando a utilização de biomassa de branchoneta como alimento para peixes ornamentais foram realizadas pesquisas na EPPA, utilizando o apaiari, Astronoturs ocellatus (ver o box Apaiari) e o acará bandeira Pterophyllum scalare (ver o box Acará bandeira) alimentados com ração floculada para peixes ornamentais e com a biomassa congelada de branchoneta.

O experimento realizado na EPPA constou de dois tratamentos (ração floculada para peixes ornamentais e branchoneta viva) com três repetições, para cada espécie de peixe estudada. Para cada uma das espécies – apaiari e acará bandeira – foram utilizados seis tanques medindo 3m2. Cada tanque foi estocado com 90 alevinos, ou seja, 30 peixes/m2. Em três tanques de cada espécie, os alevinos foram alimentados com a ração floculada para peixes ornamentais e nos outros três tanques os alevinos foram alimentados exclusivamente com biomassa de branchoneta congelada.

Os alevinos das espécies testadas apresentaram no início do experimento comprimento médio de 30 mm. O tempo de cultivo foi de 60 dias, tempo suficiente para os alevinos atingirem tamanho comercial (± 50 mm). Ao término do cultivo foram analisadas as seguintes variáveis: Peso (g), comprimento (mm), e percentual de sobrevivência (tabela).

Para o apaiari, os alevinos apresentaram no início do experimento comprimento e peso médios de 30,16±0,51mm e 1,30±0,51g respectivamente. Ao término do cultivo, no tratamento, utilizando-se ração floculada, o desempenho dos alevinos de apaiari não foi afetado quanto à sobrevivência final, que foi de 100%. O comprimento e o peso médios ficaram respectivamente em 71,40±0,62 mm e 7,28±2,16 g. O tratamento, utilizando biomassa de branchoneta, apresentou maiores valores em comprimento e peso com os seguintes resultados: sobrevivência de 100%, comprimento médio 92,70±0,58 mm e peso médio 20,73±3,63 g.

Para o acará bandeira os alevinos apresentaram no início do experimento, comprimento e peso médios de 32,03±2,55mm e 0,64±0,21g, respectivamente. Ao término do cultivo, no tratamento, utilizando-se ração floculada o desempenho dos alevinos de acará foi afetado quanto à sobrevivência final que foi de 53%. O comprimento e peso médios ficaram respectivamente em 58,20±6,82 mm e 3,30±0,77g. O tratamento, utilizando biomassa de branchoneta, apresentou maiores valores em comprimento, peso e sobrevivência final com os seguintes resultados: sobrevivência de 88%, comprimento médio 94,64±13,02 mm e peso médio 9,95±2,59 g.

A tabela apresenta o resumo dos principais resultados obtidos com os experimentos realizados com o acará bandeira e o apaiari na EPPA.

O Apaiari

O apaiari, Astronotus ocelllatus (AGASSIZ, 1831), é um peixe de origem amazônica pertencente à família Cichlidae, conhecido também na aquariofilia como “oscar”. Apresenta uma coloração geral do corpo bastante variável. O padrão de colorido despertou nos criadores de peixes ornamentais uma necessidade de aplicar critérios de melhoramento genético. Um único exemplar adulto pode variar de US$ 50 a 300 no mercado internacional.

Na EPPA, esta espécie é criada em um tanque adaptado para a espécie, visando à agregação de casais. Após o acasalamento, cada casal é transportado para um tanque de menor porte onde permanece isolado e, assim se obtém desovas que variam de 200 a 500 jovens alevinos por desova dependendo da idade e tamanho do casal. Apresenta desova parcelada, o que contribui na facilidade de obtenção de jovens, sem os quais qualquer projeto de propagação de alevinos se torna inviável. Trata-se de espécie onívora, aceitando quase todo tipo de alimento, inclusive ração comercial, apesar de sua preferência por organismos vivos como pequenos peixes e camarões.

 

Testes de preferência alimentar

Paralelo a esses experimentos foram realizados testes de preferência alimentar para as duas espécies de peixes, onde foi comparado o consumo de ração comercial para peixes ornamentais e a biomassa de branchoneta. Foram observados os comportamentos de tempo de consumo total do alimento e preferência alimentar. Para ambas as espécies, foi observada preferência por ambos os alimentos, não havendo diferença significativa entre os tratamentos quanto a este teste.

Conclusões

Os resultados alcançados neste trabalho, no que se refere ao comprimento do acará bandeira com a utilização de ração floculada para peixes ornamentais (58,20±6,82mm), estão de acordo com os resultados citados em outros experimentos já realizados. No entanto, o resultado superior obtido no crescimento do acará bandeira quando alimentado com branchoneta (94,64±13,02 mm) destaca a importância desse microcrustáceo como alimento vivo destinado à aqüicultura e, em especial, aos peixes ornamentais com tendência a carnivoria, como o acará bandeira e o apaiari.

A proporção de proteína de origem animal a base de peixe e camarão (>40% de PB) encontrada na ração, e o valor protéico da branchoneta (> 60% de PB), fazem destes alimentos uma grande preferência alimentar para as espécies em estudo. Contudo, diante dos resultados, fica clara a importância da branchoneta como alimento para peixes ornamentais a exemplo das espécies em estudo entre outras.

Tem-se encontrado que algumas espécies de anostráceos de água doce como Thamnocephalus platyurus, Chirocephalus diaphanus e Streptocephalus proboscideus, entre outras, superam a quantidade de ácidos graxos presentes na maioria das cepas de artêmia (MURA, 1995). A grande maioria das larvas necessita de dietas que possuam de 0,5 a 2% (peso seco) de ácidos graxos poli-insaturados (PUFAs), como o ácido linolênico, EPA (ácido eicosapentanóico) e DHA (ácido docosahexanóico) que agem diretamente estimulando o crescimento larval, a sobrevivência e aumentando a resistência ao estresse.

Acredita-se que devam ser estes ácidos que estejam presentes no anostráceo branchoneta, e que, vêm proporcionando sucesso no crescimento e sobrevivência de espécies de peixes carnívoros ou com tendência a carnivoria, a exemplo dos ornamentais, acará-bandeira e apaiari, entre outras já testadas na EPPA.

Dados iniciais e finais do cultivo de Apaiari e Acará-bandeira, submetidos a duas dietas 
Dados iniciais e finais do cultivo de Apaiari e Acará-bandeira, submetidos a duas dietas

O Acará bandeira

Pertencente a família dos ciclídeos, o acará bandeira, Pterophyllum scalare, é a principal espécie ornamental produzida por aqüicultura no Brasil. Trata-se de um peixe de origem amazônica e apresenta cuidado parental com ovos e alevinos assim como seus parentes bem próximos, os tucunarés (Cichla sp.) e o apaiari, Astronotus ocellatus. Apresenta como característica principal uma linha lateral interrompida. Aceita bem ração comercial e como os demais ciclídeos dá preferência a pequenos organismos vivos. Atualmente existem três espécies descritas: Pterophyllum altum, P. leopoldi e P. scalare (LIMA, 2003). Suas variedades comerciais são: negro, marmorizado, zebra, gold, stripless, fumaça, halflblack, marmorizado dourado, pérola, listrado, véu e albino.

Hoje graças à aqüicultura ornamental, o número de capturas no ambiente natural vem diminuindo sensivelmente. O cultivo de acará bandeira é uma opção muito interessante para o produtor rural, pois alia um mercado amplo, uma boa margem de lucro e uma tecnologia de produção simples, eficiente e bem dominada. O tamanho mínimo de comercialização deste peixe é de 2,5 cm de comprimento padrão, mas o tamanho mais comercializado é na faixa de 4 a 6 centímetros. Para atingir este tamanho os acarás passam por um período de engorda de três a quatro meses.