Está no Decreto mas poucos sabem exatamente do que se trata
Autor: Felipe Suplicy (PhD Student), School of Aquaculture, University of Tasmania.
Entre as exigências para cessão de uso de áreas do Patrimônio da União para maricultura, determinadas pelo Departamento de Pesca e Aqüicultura (DPA – MA), através do Decreto do Presidente da República número 2869 de 9 de dezembro de 1998, lemos no artigo 20 que “a criação de parques e suas respectivas áreas aqüícolas se dará por ato normativo conjunto dos Ministérios da Agricultura e do Abastecimento, da Marinha, da Fazenda e do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, que definirá seus limites, diretrizes, normas de utilização e estabelecerá sua capacidade de suporte.” Mas o que vem a ser a capacidade de suporte? Como ela é estabelecida? Quem irá efetivamente estabelece-la?
O conceito de capacidade de suporte de um ecossistema é derivado da ecologia de populações. No contexto da utilização de ecossistemas, a questão é se a capacidade de suporte deve ser considerada como uma característica intrínseca da população, ou uma característica do ecossistema. A equação de crescimento logístico de uma determinada população, por exemplo, descreve a capacidade de suporte como um parâmetro populacional. Por outro lado, aparte da equação logística, este conceito pode ser utilizado para indicar a produtividade de um ecossistema.
Alguns autores consideram a capacidade de suporte como sendo o ponto onde a biomassa de uma determinada população cessa de crescer, e o montante de biomassa mantida nestas circunstâncias é considerado a capacidade de suporte máxima. No caso específico de moluscos bivalves (ostras, vieiras e mexilhões) a capacidade de suporte é definida como a densidade de cultivo na qual os níveis de produção são maximizados sem afetar negativamente a taxa de crescimento. É importante salientar aqui que a capacidade de suporte sustentável é sempre menor do que a capacidade máxima, devido principalmente a variações ambientais que ocorrem ao longo dos anos.
Como uma densidade de estoque maior pode levar a um menor crescimento individual juntamente com uma produção total relativamente maior em peso, é importante definir produção em função do tamanho comercial praticado em uma determinada área, se o objetivo é atingir uma boa produção em termos de qualidade além de peso. Como conseqüência, a capacidade de carga sustentável é definida como a densidade de estoque que permitirá a máxima produtividade de moluscos do tamanho comercial exigido pelo mercado. Outro fator crucial é a questão do tempo para se atingir o tamanho comercial. O Brasil dispõe da vantagem de ter um dos crescimentos mais rápidos do mundo mas tal vantagem pode ser perdida se a implantação e operação dos cultivos não forem cuidadosamente planejadas. Entre os aspectos a serem considerados, podemos citar a densidade de cultivo, definida pela distância entre as instalações no mar, como uma das mais importantes. Muitos países onde os moluscos cresciam quase tão rápido quanto os cultivados no Brasil, como a China e Espanha, apresentam hoje o dobro de tempo para atingir o mesmo tamanho, resultando na perda de uma enorme vantagem num mercado internacional cada vez mais globalizado e competitivo.
Além do fator econômico-populacional da capacidade de suporte, há também a questão ambiental do cultivo de moluscos. É evidente que mesmo antes de atingir um nível de produtividade máxima, cultivos de moluscos causam invariavelmente alguma perturbação sobre o ambiente original. Apesar disto, nem sempre esta perturbação é necessariamente prejudicial. Quando implantados e operados em densidades dentro dos limites impostos pela capacidade sustentável do local, cultivos de moluscos podem agir como criadouros/atratores de peixes. Um efeito sobre o sedimento original estará sempre presente, na maioria dos casos ocorre um aumento da diversidade de animais bentônicos com uma alternância entre as espécies dominantes. Somente quando acima das densidades desejáveis e principalmente em locais rasos com limitada circulação de água é que os biodepósitos (fezes e pseudofezes) e animais que despencam dos cultivos podem levar a impactos negativos sobre o sedimento, podendo levar até mesmo a eutrofização de um local mais abrigado de correntes marinhas.
Cultivos muito concentrados podem servir como “paredes” submersas, retendo e causando a sedimentação excessiva de materiais em suspensão na água. Numa escala maior de impacto ambiental mantido por vários anos, cultivos podem levar a alteração da população fitoplanctônica causando o afloramento de marés com temíveis algas tóxicas.
Para os moluscos que chegam a filtrar até cerca de 100 litros de água por dia, retendo o plâncton como alimento, cultivos em densidades excessivas significam invariavelmente uma situação de stress. Quando o alimento disponível na água não é suficiente nem para satisfazer as exigências nutricionais de manutenção do animal, ou seja, numa situação em que a energia assimilada é igual a energia gasta para sobreviver com crescimento zero, torna-se necessária a utilização de suas reservas energéticas, através de reabsorção dos tecidos reprodutivo e somático. Se esta condição for mantida por um período prolongado, maiores taxas de mortalidades começam a aparecer. Além disso, nesta situação doenças, parasitas e predadores ficam mais concentrados e evidenciados na diminuição da qualidade do produto final.
Enseada do Brito
Um provável (não documentado cientificamente) exemplo de ultrapassagem da capacidade de suporte sustentável pôde ser observado na Enseada do Brito, em Palhoça – SC. Em 1997 havia nesta área 96 pequenos produtores e cerca de 2.200 toneladas de mexilhões em cultivo. Com uma profundidade média de 2 metros e uma circulação de água consideravelmente limitada pela configuração geográfica da enseada, a densidade elevada praticada por todos os produtores individualmente e também coletivamente pela disposição das estruturas de cultivo, resultou em sintomas característicos de ultrapassagem da capacidade de suporte. O tempo necessário para se atingir o tamanho comercial de 8 cm que no início da atividade era de 6-7 meses, aumentou para 12-13 meses. Os mexilhões, forçados a utilizar suas reservas energéticas devido a situação de stress, deixaram de desovar à medida que suas gônadas necessitavam ser reabsorvidas. O padrão de circulação da água dentro da enseada foi consideravelmente alterado e o sedimento elevado em cerca de meio metro. Após uns dois anos, os produtores se conscientizaram que as altas densidades eram a causa destes efeitos e gradativamente passaram a transferir seus cultivos para as áreas adjacentes à entrada da enseada, onde a circulação de água é maior. Pouco a pouco as condições dentro da Enseada do Brito têm melhorado, mas a produtividade ainda se encontra abaixo da obtida anteriormente ao impacto.
Exemplos como estes são mais comuns nos países que já vem praticando o cultivo de moluscos há mais tempo. Sorte da emergente indústria brasileira, pois é muito mais fácil aprender com o erro dos demais países do que repetirmos os procedimentos e amargarmos os mesmos prejuízos. Vejam estes exemplos:
A Espanha, país de maior tradição no cultivo de mexilhões, iniciou seus cultivos há cerca de 50 anos, tendo alcançando uma produção de 245.500 toneladas em 1987. Entretanto, devido a problemas causados pela superação da capacidade de carga do ambiente levando ao afloramento de marés vermelhas, sua produção baixou para 90.500 toneladas em 1993. Atualmente ela está se recuperando, tendo produzido 188.462 toneladas em 1996.
Também devido ao desconhecimento ou não observância das limitações em relação à capacidade de carga do ambiente, a China, que em 1992 produziu 538.895 toneladas, vem tendo sua produção reduzida gradativamente até o presente, com 361.261 toneladas. O desenvolvimento acelerado da maricultura intensiva na última década levou à deterioração do ambiente de cultivo. Nas áreas mais ao norte, cultivos de abalone e vieiras têm sido seriamente afetados por doenças e mortalidades nos últimos anos.
Na Baía de Hiroxima, Japão, as ostras levavam um ano pra atingir o tamanho comercial no período entre 1950 e 1980. Após este data, a proliferação de balsas de cultivo aumentou o tempo de cultivo para dois anos, até que a cooperativa de produtores decidiu reduzir o número de balsas gradativamente para recuperar sua taxa de crescimento anterior.
Como determinar a capacidade sustentável?
Uma vez evidenciado a necessidade de se determinar a capacidade suporte resta a pergunta. Como fazê-lo? De acordo com as últimas pesquisas nesta área, a capacidade suporte pode ser determinada na escala de um ecossistema ou numa escala local. Na escala maior esta determinação é geralmente baseada na produção e importação de alimento (plâncton), enquanto que numa escala local esta avaliação considera mais fatores físicos como substratos, correntes e geomorfologia do local. O principal meio de se determinar isto é através da utilização de modelos ecológicos que reproduzam todos os compartimentos envolvidos no problema, interagindo em função das forças motrizes que controlam os processos de transporte do alimento entre áreas adjacentes, como a re-suspensão de material do sedimento, ventos, marés e suas interações com a população de moluscos.
É necessário ainda a inserção de sub-modelos que reproduzam a peculiar ecofisiologia alimentar dos moluscos bivalves, caracterizada por diversos mecanismos reguladores que agem de acordo com a quantidade e qualidade do alimento presente na água. Todos as etapas que compõe o processo de alimentação contam com diversos controles fisiológicos para obter o máximo de energia, independentemente da enorme variação temporal e espacial de seu alimento. Entre estes controles podem ser citados: controle do tempo de trânsito do alimento dentro da glândula digestiva bem como de sua capacidade máxima de ingestão, seleção preferencial da matéria orgânica particulada entre o material total em suspensão na água, alteração desta eficiência de seleção e da eficiência de absorção de acordo com a qualidade e quantidade do alimento, além de uma série de outras habilidades fisiológicas que tornam extremamente difícil a previsão do alimento bombeado pelo molusco bem como de sua taxa de ingestão, produção de biodepósitos e assimilação de energia em função das constantes variações de seu alimento. Em situações de depleção do plâncton e stress todos estes recursos podem ser utilizados concomitantemente para otimizar o balanço energético do animal.
Modelos e Sub-modelos
Depois de identificados e inseridos em modelos os diferentes compartimentos que constituem o ambiente de cultivo, é necessário ainda conectar os diferentes sub-modelos com suas respectivas diferentes escalas temporais e espaciais. Tarefa esta dificultada pela extrema variabilidade temporal das adaptações fisiológicas dos moluscos bivalves e modificações na composição do ambiente marinho. Enquanto alguns processos são alterados em questão de horas (ex. taxa de filtração, absorção), outros necessitam dias (sucessão de gerações fitoplanctônicas), semanas (mudança no índice de condição dos moluscos), meses (mudanças na composição de espécies do fito/zooplâncton) ou até anos (El Nino/La Nina) para passarem para outro estado.
Após concluído, o modelo de capacidade de suporte precisa ser exaustivamente testado com experimentos de campo, confrontado com dados reais e calibrado de forma a dar respostas confiáveis para o produtor ou órgão regulamentador da atividade. Uma vez desenvolvido, tal modelo pode ser utilizado em outras áreas, bastando inserir dados das variáveis ambientais locais e de suas variações ao longo de, pelo menos, uns dois anos. Devido a enorme especificidade da fisiologia alimentar dos moluscos, é muito difícil fazer um modelo que seja suficientemente genérico para abranger mais de uma espécie. Entretanto, a base de inter e intra-relações sobre a qual o modelo foi construído pode servir para substituir os padrões fisiológicos presentes pelo de um outro molusco bivalve, com relativamente menos trabalho do que a elaboração de outro modelo inteiramente novo. O desafio aqui é desenvolver um modelo que reproduza estas interações de uma maneira suficientemente detalhada para produzir resultados confiáveis, sem no entanto ser um modelo tão complexo que se torne inoperável ou limitado à condições específicas sobre as quais foi formulado. Esta abordagem do processo de modelagem tem a ver com uma frase célebre de Einstein na qual ele diz que: a melhor explicação é a mais simples possível, mas não mais simples.
Apesar de possível em teoria, diversos pesquisadores de vários países têm trabalhado na última década para desenvolver tais modelos, sendo que a quantidade de trabalhos publicados na área é bem extensa e a vasta maioria é voltada para espécies de clima temperado com suas respectivas marcantes variações sazonais. Mesmo assim, não existe ainda um modelo de capacidade de suporte para cultivo de moluscos que seja totalmente confiável e pesquisadores da área acreditam que este é um dos grandes desafios para serem elucidados por trabalhos futuros.
Brasil
No caso do Brasil, ainda há muito o que se fazer pois as primeiras informações sobre a fisiologia de nosso mexilhão nativo, o Perna perna, somente agora estão sendo mais intensamente estudadas. Dados sobre a variação dos parâmetros ambientais de uma série de áreas de cultivo de Santa Catarina estão sendo monitorados ao longo dos últimos anos, e esforços para inserir estes dados em modelos utilizáveis estão sendo empreendidos. Isto significa que não há como, com o conhecimento disponível atualmente no Brasil, que a curto prazo o DPA ou o IBAMA possam determinar a capacidade de carga dos novos parques aqüícolas. Como este é um assunto que interessa praticamente a todos os países que cultivam moluscos, esforços continuam sendo empreendidos em todos os continentes com muita troca de informações, experiências e resultados além de conferências específicas sobre o assunto.
Os resultados dos esforços empreendidos pelos pesquisadores brasileiros deverão estar disponíveis mais a médio prazo (dentro de dois ou três anos) e é esperado que seja desenvolvido um modelo próprio para o nosso ambiente e espécie. Entre os agentes envolvidos atualmente nestes estudos estão o LCMM – Laboratório de Cultivo de Moluscos Marinhos da UFSC -Universidade Federal de Santa Catarina, atuando como coordenador do projeto; a University of Victoria – Canadá, através do convênio UFSC – BMLP – Brazilian Mariculture Linkage Program, que há dois anos auxilia na implantação de um programa de monitoramento ambiental; Universidad del Pais Basco – Espanha, colaborando com o desenvolvimento de trabalhos sobre a fisiologia alimentar do Perna perna e, a University of Tasmânia – Austrália, orientando o desenvolvimento de estudos que possam ser inseridos em um modelo próprio para o Perna perna e as condições do litoral brasileiro, utilizando os conhecimentos já adquiridos na modelagem ecológica para Mytilus edulis e os resultados obtidos nos trabalhos em andamento com as demais universidades envolvidas.