Pesquisadores da UFPR identificam o agente causador da
mortandade de caranguejos no litoral do Nordeste
Desde 1998, expressivas mortandades do caranguejo-uçá Ucides cordatus têm sido registradas em diversos estados do nordeste brasileiro, estendendo-se entre o Ceará e a região sul da Bahia, afetando os estoques naturais locais, bem como a sua comercialização. O fato obriga bares e restaurantes de todo o nordeste a importar o produto de manguezais do estado do Pará, onde aparentemente não há registro de mortandades.
Os caranguejos moribundos apresentam-se letárgicos, sem controle dos apêndices (pereiópodes e quelas) e sem equilíbrio. Quando a morte ocorre, aparentemente fora da toca, os caranguejos são encontrados geralmente de cabeça para baixo. O agente causador dessa mortalidade era até então desconhecido, induzindo leigos, e até pesquisadores a acreditarem que a enfermidade estivesse associada à atividades humanas emergentes, entre elas a carcinicultura.
Para identificar as causas das mortandades do caranguejo-uçá no litoral sergipano, o Governo do Estado de Sergipe, através da Companhia de Desenvolvimento Industrial e de Recursos Minerais, encomendou um estudo específico aos pesquisadores Walter Boeger, Antonio Ostrensky e Márcio Pie, do Grupo Integrado de Aqüicultura e Estudos Ambientais (GIA) da UFPR. O estudo completo está previsto para ser realizado em aproximadamente um ano, e está dividido em três etapas: a definição do agente causador da enfermidade; o desenvolvimento de métodos diagnósticos moleculares e, pesquisa epidemiológica preliminar nos estoques de caranguejos dos manguezais sergipanos.
A Doença do Caranguejo Letárgico
Os sintomas característicos da enfermidade, descritos anteriormente, levaram os pesquisadores a batizar a enfermidade de Doença do Caranguejo Letárgico (DCL). As análises realizadas nos primeiros três meses do estudo demonstraram que os animais com sintomas da DCL apresentavam uma grande abundância de organismos nos seus tecidos, especialmente no coração, nos gânglios nervosos e na hemolinfa. Estas análises, além de estudos morfológicos e comparações de seqüências de DNA, apontaram um fungo do filo Ascomycota, subfilo Pezizomycotina, como sendo o agente causador da DCL.
Uma grande quantidade desse fungo ascomiceto no caranguejo-uçá afeta especialmente o coração e o sistema nervoso. O tecido cardíaco, nos estágios avançados da DCL, fica todo tomado por hifas e esporos do fungo, promovendo lesões que prejudicam seriamente o funcionamento deste órgão, levando à redução da capacidade do coração para bombear a hemolinfa, o que explica o fato de que uma vez estressados, morrerem rapidamente.
Catadores dos caranguejos foram entrevistados e relataram que os animais com sinais da DCL costumam morrer em menos de 30 minutos depois de capturados. A necrose provocada por hifas e esporos no tecido nervoso, em especial nos gânglios ventrais (cerebral e torácico), pode explicar a letargia, a redução do equilíbrio e de controle motor em caranguejos doentes.
O advento das mortandades do caranguejo-uçá no Nordeste brasileiro não representa um caso isolado no mundo. Novas enfermidades, muitas delas tão nocivas e desconhecidas como a DCL, vêm sendo registradas para outras espécies de crustáceos, em diferentes regiões do planeta. A Doença do Caranguejo Amargo (Bitter Crab Disease) em siris e caranguejos-da-neve (“snow crabs”) e uma enfermidade viral fatal de lagostas do Atlântico Norte são exemplos recentes. Este aumento mundial de casos de novas enfermidades não passa despercebido pela comunidade científica, sendo escolhido como o assunto central do Simpósio de Crustáceos de Interesse Comercial que será realizado em Glasgow em 2005. www.gla.ac.uk/icc6/
A origem dos fungos
Depois de comprovada a relação entre o fungo e a DCL, resta ainda a dúvida sobre a sua origem. Por isso, um dos objetivos de estudo dos pesquisadores da UFPR é justamente desenvolver um método de diagnóstico molecular que permita não apenas mapear a presença do fungo nos manguezais do estado de Sergipe, mas também realizar uma ampla varredura nos ambientes (amostras de solo, água) e em outros organismos (ex. camarões, outras espécies de caranguejos) para obter informações mais precisas, que permitam conhecer melhor a origem ou a forma de transmissão da DCL nas áreas afetadas. Está em andamento nos laboratórios da UFPR um estudo para comparar o material genético do fungo associado à DCL de regiões geográficas diferentes, o que poderá determinar se a doença é natural ou não. Se for uma enfermidade natural (= pré-existente na região), espera-se que exista variação genética significativa entre fungos de regiões distantes, como a Bahia e Sergipe. Se, por outro lado, não houver diferenças genéticas significativas entre os fungos de estoques de uçá geograficamente distantes, isso indicará que a doença tem origem recente, possivelmente por influência humana. Portanto, segundo os pesquisadores do GIA/UFPR, qualquer acusação não baseada em fatos, experimentos e/ou evidências científicas concretas deve ser tratada como simples especulação, não merecedora de crédito.
A associação freqüentemente proposta entre a carcinicultura e a DCL, segundo os pesquisadores, não é consistente e, ao que parece, está mais calcada em paixões ideológicas do que em evidências científicas. Existem regiões onde não existem viveiros de cultivo, mas mesmo assim a mortandade dos caranguejos tem ocorrido. O oposto é, também, verdadeiro. A mesma lógica pode também ser aplicada em relação às acusações associando a DCL à contaminação química, orgânica, artes predatórias de captura, etc. E, a menos que o vínculo entre a atividade acusada e a mortandade venha a ser cientificamente estabelecida, qualquer sugestão neste sentido continuará sendo pura especulação.
O trabalho científico completo do GIA utilizado para embasar a análise apresentada neste artigo foi submetido à publicação na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, tendo como título “Identity of the Putative Agent of the Lethargic Crab Disease (LCD), Responsible by Massive Mortalities of the Mangrove Crab, Ucides cordatus (Brachyura, Ocypodidae), in Northeastern Brazil.”