Patricia Abelin é uma bióloga brasileira, especialista em artemia salina e diretora da Aqua Systems Ltda.Mora em Salt Lake City, nos EUA, bem às margens do Great Salt Lake ou Grande Lago Salgado, o principal provedor mundial de cistos de artemia salina, um microcrustáceo indispensável na larvicultura de diversas espécies cultivadas pela moderna aqüicultura. A Panorama da AQÜICULTURA convidou Patricia para retratar o Great Salt Lake e a indústria de processamento de cistos de artemia que explora esse incrível recurso natural. Patricia relata também a recente crise, desencadeada com a suspensão brusca da pesca de cistos ocorrido no final de outubro último, que desencadeou uma crise sem precedentes, jamais vivida pelos produtores que dependem desse insumo.
Curiosidades sobre o Great Salt Lake -GSL
O Great Salt Lake (Grande Lago Salgado), localizado no estado de Utah nos EUA, é um integrante essencial da indústria mundial de aqüicultura. Aproximadamente 90% do cisto de artemia utilizado por esta indústria é proveniente do GSL. Entre outros elementos também encontrados e extraídos do GSL, está o cloreto de sódio (sal de cozinha), principal responsável pela salinidade do lago, magnésio, potássio, sulfatos e carbonatos. Entre estes, são extraídos anualmente em torno de 2.5 milhões de toneladas de matéria prima do GSL.
O GSL é reminescente do lago Boneville que, há aproximadamente 5.000 anos atrás, era de água doce e ocupava uma área até 10 vezes mais extensa que o GSL atual. Hoje o GSL é caracterizado como lago hipersalino e possui uma superfície total em torno de 4.300 km quadrados. Sua parte mais longa chega a atingir 160 km de extensão e a salinidade pode variar entre 90 e 280 ‰. Esta grande variação na salinidade é decorrente da combinação entre o aporte de água doce e o nível de evaporação. Pelos ecologistas, o GSL também é conhecido como um local de importância estratégica na rota de pássaros migratórios onde buscam abrigo e alimento. A biomassa de artemia e a “mosca de sal” (Gen. Ephydra) constituem uma fonte básica de alimento para que estes pássaros continuem viagem.
A População de Artemia no GSL
O ciclo de vida da artemia inicia-se a partir de um cisto que possui um embrião em diapausa. Estes cistos podem permanecer viáveis por vários anos quando desidratados. A cada ano, no final do inverno, a temperatura da água começa a aumentar e o aporte de água doce proveniente do degelo de neve das montanhas, passa a diminuir a salinidade do lago. Estas condições, provocadas por um processo natural, se tornam favoráveis para que os cistos hidratem, eclodam e passam a dar início ao primeiro estágio de crescimento da artemia, conhecido com larva náuplio. Dependendo da temperatura da água, a velocidade do desenvolvimento do náuplio pode variar. A artemia se torna adulta entre 2 e 3 semanas de vida e seu comportamento reprodutivo pode variar em função das condições ambientais.
Quando o aporte de alimento é abundante e as condições de estresse, provocadas pelo aumento da salinidade e diminuição do nível de oxigênio dissolvido, são mínimas, as fêmeas fertilizadas passam a liberar náuplios pelo processo de reprodução ovovivípara. Durante um período de até 3 meses, cada fêmea produz em torno de 300 náuplios a cada 4 dias. Entretanto, quando as condições ambientais passam a se tornar exaustivas, afetada por um dos fatores citados acima ou pela combinação de todos eles, o modo de reprodução das fêmeas passa a ser ovíparo, passando a liberar cistos, que flutuam na superfície do lago por serem menos densos que a água hipersalina do GSL.
O comportamento reprodutivo da população de artemia que habita o GSL é determinado pelas regras impostas pela natureza e, sob condições ambientais favoráveis, resultam em extensa produção de cisto a cada ano.
A qualidade do Cisto
Independente da quantidade de cistos provenientes de uma mesma safra, a qualidade do mesmo pode variar bastante. Em alguns anos, o cisto com taxa de eclosão em torno de 70% poderá ser o melhor disponível no mercado; em outros, nunca chegará a ser consumido devido a grande quantidade de produto de melhor qualidade à disposição.
A qualidade do cisto costuma ser categorizada no mercado como cisto do Tipo A, B, C … Na realidade todas estas categorias são baseadas em critérios bastante aleatórios. Como exemplo, a qualidade do cisto Tipo A podem variar de ano para ano ou de empresa para empresa. Como indicativo mais preciso, a qualidade do cisto deve ser avaliada pela taxa de eclosão e número de náuplios por grama. A taxa de eclosão significa a porcentagem de cisto que eclode dentro de 24 horas em condições ideais de temperatura (25 – 28 °C), salinidade (18 – 30 ‰) e densidade (1,5 – 2,0 gramas de cisto/litro) .
Como a Pesca de Artemia é Realizada
A coleta de cisto de artemia que até 1990 era livre e poderia ser realizada no decorrer do ano inteiro é controlada pelo DWR (Departamento Estadual de Recursos Naturais). A partir de 1991 o período de pesca passou a ser concentrado entre os meses de setembro a março e, desde 1995, este período foi reduzido para apenas 4 meses entre outubro e janeiro. Além disso, a quantidade total de pesca permitida anualmente também passou a ser controlada, podendo atingir no máximo 6-7 mil toneladas em peso úmido. Ainda assim, o período de pesca pode ser reduzida a qualquer momento pelo DWR nas situações de emergência ambiental, provocadas por alterações biológicas no ecossistema que possam vir a afetar a população de artemia, ou no caso da quantidade máxima de pesca permitida ser atingida antes de final de janeiro. Como exemplo, esta situação ocorreu no ano passado onde a pesca foi interditada no final de novembro quando o volume máximo permitido para a pesca havia sido atingido.
Aparentemente, o processo de pesca de cisto de Artemia parece bastante simples. Basta que o cisto seja localizado, cercado com bóias flutuantes e bombeado para dentro do barco. Porém, para fazer com que este processo ocorra, diversas e complexas estratégias são usadas, incluindo a localização dos cistos por via aérea, utilização de barcos com motores possantes e uma equipe extremamente treinada e ágil para poder se sobressair perante a forte concorrência.
Por tratar-se de uma indústria de pesca, esta atividade está totalmente exposta às leis impostas pela natureza. Nevoeiro intenso e ventos são bastante comuns durante a temporada de pesca. Além disso, os dias são curtos e frios e, com tempo ruim, as empresas não podem sair para pescar. Quando o tempo está favorável, o trabalho árduo é iniciado antes do amanhecer, indo até bem mais tarde do que o pôr do sol, em temperaturas abaixo de zero graus centígrados. A temperatura da água também pode chegar a ser negativa, só não congelando devido a sua elevada salinidade. Na hipótese de uma pessoa cair dentro d’água, sem roupa apropriada, a morte por hipotermia ocorrerá em minutos.
Muitas pessoas olham para esta indústria como se fosse a pesca do ouro flutuante. Na realidade, a massa de cisto concentrada na superfície do lago, com o reflexo do sol, chega a brilhar como se fosse ouro. Trazer a artemia para processar e distribuir é muito mais do que ambição numa indústria dependente do que a “mãe natureza” tem para oferecer. Não é fácil e barato atracar no final do dia com o barco cheio. Apesar da temporada de pesca ser teoricamente limitada a um período de até quatro meses, na realidade, a cada ano, os dias favoráveis para uma boa pesca com tempo aberto, águas calmas e uma forte concentração de massa de cisto, podem, muitas vezes, serem contados nos dedos das mãos.
O Crescimento da Indústria
O numero de empresas operando no GSL vem crescendo rapidamente desde o início dos anos 90 como pode ser observado na tabela, que contém também o volume de cistos registrados pelo DWR, pescado a cada ano, em peso úmido. Empresários se sentem atraídos por esta indústria quando escutam que o valor comercial do cisto processado pode chegar a mais de US$ 30 por libra. Mas a maioria costuma olhar apenas o preço final do produto, esquecendo do risco envolvido e do elevado custo operacional para manter este tipo de negócio. Desde 1994 a indústria cresceu de 12 empresas, que dividiam 18 licenças de pesca, para 32 empresas que passaram a dividir 79 licenças. Cada licença custa atualmente US$ 10.000 e o número de licença por empresa varia de acordo com o porte da mesma. Cada barco de pesca, independente do seu tamanho, deve possui sua própria licença. Muitas empresas procuram manter segredo industrial das técnicas utilizadas em seu processo de pesca e produção, onde muitas das etapas são patenteadas. Existe casos de empresas que processam judicialmente seus concorrentes por infringirem os procedimentos patenteados, utilizando técnicas similares. Com o crescimento da concorrência, as empresas estão sempre buscando maneiras de aumentar sua capacidade de coleta, incluindo algumas vezes até práticas ilegais. O volume da pesca de artemia registrado pelo DWR, é feito com base nas informações fornecidas por cada empresa envolvida nesta atividade. As empresas fornecem as informações baseadas em peso úmido do cisto recém coletado, estando estes dados sujeitos a uma grande variável que vai desde o conteúdo de resíduos coletados junto com o cisto até a responsabilidade de cada empresa em divulgar corretamente o volume de cisto capturado. A maioria das empresas pertence à Associação dos Produtores de Artemia que é bastante ativa nos assuntos relacionados à regulamentação desta indústria. A Associação também está envolvida com pesquisas sobre o gerenciamento deste recurso natural, regulamentações de acesso às marinas e até a segurança aérea das aeronaves envolvidas.
A Safra de 97/98 e a Crise
Para aqueles que lembram da crise ocorrida em 1995, quando faltou cisto de artemia no mercado e o preço deste produto chegou a atingir níveis absurdos, vai demonstrar-se menos surpreendido ao receber as notícias do que está ocorrendo este ano. Ainda em outubro deste ano, logo após a temporada de pesca completar três semanas e, para surpresa das 32 empresas envolvidas diretamente nesta ativamente, o DWR anunciou que a pesca de cisto seria suspensa dentro de cinco dias e que o volume total de captura seria reduzido a aproximadamente 30% da média de cisto que vinha sendo capturado por ano, no decorrer das duas últimas temporadas.
Esta situação veio representar de imediato uma queda superior a 70% na disponibilidade de cisto de artemia no mercado mundial e já está causando a mais alarmante falta de artemia conhecida na estória.
A decisão do DWR em reduzir o volume da pesca de cisto de artemia, fechando a temporada de pesca antecipadamente, foi baseada em uma combinação de fatores que, mesmo considerados de forma independente, são responsáveis pelo atual declínio da população de artemia no lago. Entre os fatores considerados, o declínio da salinidade na água do lago foi o que mais influenciou esta decisão. A baixa salinidade, resultante de intensas chuvas e do baixo índice de evaporação que vinha ocorrendo durante os últimos meses, afeta a produção de cistos e dificulta que os cistos existentes atinjam a superfície do lago para serem coletados. Além disso, a baixa salinidade também facilita o aparecimento de predadores que podem afetar a população de artemia do GSL, como os insetos aquáticos do tipo corixídeos.
Previsões Futuras
Em 1976, a possibilidade de que a artemia pudesse vir a ser um ponto de estrangulamento para o desenvolvimento da indústria de aqüicultura já havia sido levantada em Kioto, no Japão, durante a reunião organizada pela FAO sobre avanços da atividade. Naquela ocasião, a indústria do cultivo de camarão, responsável atualmente por 80% do consumo anual de cistos de artemia, estava dando seus primeiros passos. Para dar suporte ao desenvolvimento e ao sucesso desta indústria aflorante, diversos grupos de pesquisas iniciaram estudos sobre dietas artificias para substituir ou complementar os náuplios de artemia. Outros grupos se voltaram para fazer levantamentos das áreas de ocorrência natural desse micro crustáceo, de modo que a indústria de artemia poderia vir a ser desenvolvida. Apesar dos esforços, decorridos mais de vinte anos, os produtores de organismos que dependem de artemia se encontram expostos a um possível estrangulamento de suas atividades devido a falta de artemia no mercado. O volume máximo de cisto de artemia que pode ser extraído a cada ano do GSL está limitado pelo DWR em 6-7 mil toneladas (peso úmido).
Mesmo se considerarmos que em cada safra o volume máximo da pesca seja atingido, não é difícil prever que a capacidade máxima sustentável da pesca de artemia no GSL não poderá acompanhar o crescimento da aqüicultura. Apesar de outras fontes de cisto de artemia existirem e serem conhecidas, pouco se sabe ainda sobre a quantidade e qualidade do produto proveniente dessas áreas. Desta forma, é muito importante que aqueles que dependem de artemia para alimentar organismos aquáticos durante alguma fase do seu desenvolvimento, se conscientizem de que a indústria da artemia está passando por um momento de crise, que poderá se perpetuar por um tempo ainda desconhecido.
A redução da disponibilidade do produto no mercado já é uma realidade e, o preço do cistos se encontra bastante elevado, com tendência a continuar subindo. Para minimizar o impacto da falta de artemia, os produtores devem procurar reduzir ao máximo o uso deste produto, considerando a máxima substituição de náuplio de artemia por dietas balanceadas mesmo que, em alguns casos, novas técnicas de manejo tenham que ser consideradas.