A Salicórnia

Uma planta que pode ser utilizada no cultivo integrado com o camarão

Por:
César S. B. Costa, Departamento de Oceanografia -FURG
e-mail: [email protected]


O cultivo integrado de camarão e plantas tolerantes a salinidade como a Salicórnia, é hoje uma promissora opção para minimizar os impactos causados pela carcinicultura marinha, uma atividade que já opera milhares de hectares de viveiros ao longo da costa do Brasil. O método se baseia na captação e utilização da água salgada que sai dos viveiros de camarões para irrigar e fertilizar canteiros de plantas que, por sua vez, irão crescer e gerar matéria vegetal que poderá ser utilizada na alimentação de rebanhos ou mesmo na alimentação humana.

O desenvolvimento de métodos de utilização dos efluentes que propiciem uma carcinicultura sustentável é, atualmente, uma necessidade eminente. Entre as opções disponíveis, está o cultivo integrado de camarão e plantas halófitas (Grego, hal = sal, phyton = planta). Existem cerca de 2000 a 3000 espécies de plantas halófitas, mas apenas algumas dezenas destas demonstram potencial agrícola.

No Brasil, no final da década de 1990, foram realizados importantes estudos de controle da água de rejeito de salinizadores e da criação de tilápias no semi-árido nordestino, através da irrigação de plantações do arbusto halófito denominado erva-sal (Atriplex nummularia), pelo grupo da Embrapa Semi-Árido (Petrolina-PE) liderado pelo pesquisador Everaldo Porto. A Embrapa continua incentivando este tipo de cultivo da erva-sal, cuja matéria vegetal produzida é utilizada por pequenos produtores rurais para alimentar rebanhos de caprinos. Entretanto, a mesma planta não pode ser cultivada em águas marinhas, com teores salinos até 4 vezes maiores do que a água de rejeito de salinizadores (a quantidade de sais na água do mar é cerca de 35 gramas por litro).

Em várias partes do mundo, a agricultura com água do mar tem sido viabilizada a partir da domesticação de plantinhas suculentas, que ocorrem na beira de manguezais e marismas, chamadas científicamente de Salicornia (nome da espécie vegetal pertencente a família Chenopodiaceae). Existem várias espécies de salicórnias ao redor do mundo, entretanto apenas uma espécie ao longo da costa brasileira, cujo nome científico é Salicornia gaudichaudiana (Foto 1).

Foto 1 - Plantas de salicórnia (Salicornia gaudichaudiana) crescendo em uma clareira dentro de um manguezal no município de Vitória-ES
Foto 1 – Plantas de salicórnia (Salicornia gaudichaudiana) crescendo em uma clareira dentro de um manguezal no município de Vitória-ES

No Brasil não existe uma denominação popular para a salicórnia e nem registros do seu uso, mas na França, Inglaterra, Estados Unidos e Austrália ela é chamada de “herbe de Saint Pierre”, “samphire”, “glasswort”, “saltwort,” “pickleweed”, “poor man’s asparagus” ou mais recentemente de “sea asparagus” (aspargo marinho). Na Europa, as salicórnias são consumidas como salada há centenas de anos, sendo atualmente suas extremidades crocantes, servidas em refinados restaurantes, como acompanhamento de pratos a base de peixes (Foto 2 – A e B).

Foto 2 - (A) Salada de Salicórnia com cebolas e (B) Plantas "selvagens" de salicórnia (Salicornia europaea) na Europa.
Foto 2 – (A) Salada de Salicórnia com cebolas e (B) Plantas “selvagens” de salicórnia (Salicornia europaea) na Europa.

Cultivo Integrado

O cultivo de salicórnia integrado com a carcinicultura, produzindo matéria vegetal, óleo comestível e reduzindo a emissão de efluentes, surgiu como proposta comercial no início da década de 1990, inicialmente nos Estados Unidos (estados da Califórnia e Arizona) e, posteriormente, no México, na Eritréia (norte da África) e na Índia.

Já em 1994, a fazenda de Ras al-Zawr na Arábia Saudita produziu nos seus 250 hectares de cultivo de salicórnia, uma média anual de 10 toneladas de folhagem e 123 barris de sementes ricas em óleos poliinsaturados por hectare. Hoje, o cultivo de salicórnia irrigada com água salgada para produção de pastagem para rebanhos de ovinos e caprinos é amplamente divulgado em países do oeste da Ásia e norte da África. A matéria vegetal da salicórnia é utilizada para alimentação de galinhas (Arábia Saudita) ou mesmo de camarões (México), como também para a produção de suplementos alimentares e fármacos.

No Brasil, o cultivo de salicórnia com efluente da carcinicultura marinha está sendo testado no Ceará, desde o segundo semestre de 2005, em uma fazenda de camarão no município de Aracati, graças a um projeto de colaboração entre o Departamento de Oceanografia da Fundação Universidade Federal do Rio Grande – FURG, o LABOMAR-UFC e a Universidade Estadual do Ceará – UECE, financiado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, via o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia – CNPq.

O projeto de cultivo em Aracati está viabilizando a domesticação da salicórnia nativa da costa brasileira (Salicornia gaudichaudiana), o que pode significar independência e liderança tecnológica. Isto porque todos os cultivos comerciais de salicórnia no mundo são desenvolvidos com uma única espécie, nativa das Américas do Norte e Central, denominada Salicornia bigelovii, cuja domesticação foi obtida no Laboratório de Pesquisas Ambientais da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Ambas as espécies de salicórnia citadas acima são nativas de marismas e manguezais, e possuem hastes suculentas, cilíndricas e segmentadas, que são, na realidade, pares de folhas fusionadas sobre a haste primitiva, ao longo da evolução destas plantas (Foto 3 – A e B).


Foto 3 – (A – acima) Salicornia bigelovii, comercializada na maior parte do mundo e (B – ao lado) detalhe da salicórnia brasileira Salicornia gaudichaudiana

Entretanto, a Salicornia bigelovii é uma espécie que se propaga apenas através de sementes e as plantas adultas morrem após florescer, enquanto a Salicornia gaudichaudiana se propaga também através do crescimento vegetativo de brotos de suas hastes e é capaz de sobreviver por vários anos.

O maior valor potencial da salicórnia reside nas suas sementes e no seu caule. Cada planta produz milhares de sementes que podem ser espremidas para fazer óleo de cozinha. Nos Estados Unidos e México, tanto a planta como seu óleo podem ser adquiridos em lojas e supermercados. Até trinta por cento do peso seco das plantas da espécie comercial Salicornia bigelovii é composto de óleos poliinsaturados originados das suas sementes, principalmente os óleos probióticos Linoléico (70%) e Oléico (15%). Análises preliminares da salicórnia brasileira demonstram um percentual médio de óleos poliinsaturados de 16% do peso seco das plantas. Entretanto, o conteúdo protéico de suas hastes (12% do peso seco) é maior do que da salicórnia comercial (7-10%) (Foto 4).

Foto 4 - Detalhe de salicórnias férteis produzidas em Aracati-CE
Foto 4 – Detalhe de salicórnias férteis produzidas em Aracati-CE

Salicórnias podem apresentar hastes com cores verde e avermelhadas, estas últimas devido a presença de betacianina, o mesmo pigmento que dá a cor vermelha à beterraba. Cem gramas de hastes frescas de salicórnia contêm de 200 a 250 mg de vitamina C e grande quantidade de flavonóides (cerca de 1% do peso seco). Assim, hastes de salicórnia são generosas fontes de proteínas e várias substâncias probióticas.

A salicórnia no Brasil

A primeira safra de salicórnia produzida em Aracati foi cultivada em um canteiro-filtro experimental de 10m x 9m, instalado na Fazenda ASL Aqüicultura Ltda., produtora do camarão Litopenaeus vannamei. As sementes utilizadas para o plantio foram fornecidas pela Unidade de Pesquisa e Germoplasma de Halófitas – UNIHALO, Departamento de Oceanografia da FURG, no Rio Grande – RS.
As mudas da planta foram produzidas a partir de sementes, na Universidade Estadual do Ceará – UECE em Fortaleza – CE e transplantadas no canteiro com sulcos em zig-zag (Foto 5), que foram irrigados uma vez por dia com 1350 litros de efluentes do cultivo do camarão (Foto 6).

Foto 5 - Muda de salicórnia após plantio em Aracati-CE
Foto 5 – Muda de salicórnia após plantio em Aracati-CE

Foto 6 - Canteiro de cultivo de salicórnia em Aracati-CE
Foto 6 – Canteiro de cultivo de salicórnia em Aracati-CE

Entre agosto’2005 e janeiro’2006, o rendimento médio do canteiro, sem adição de fertilizantes ou chuvas, foi de 3,1 e 8,9 toneladas de peso fresco por hectare, respectivamente, para 106 dias (início da floração; produção de hastes sem sementes para forragem e consumo humano) e 155 dias de crescimento (pós-frutificação; produção de forragem e óleo). Rebrotes com ótima qualidade para forragem e consumo humano geraram, 49 dias após a primeira colheita, mais 3,7 toneladas de peso fresco por hectare. As plantas de Salicornia gaudichaudiana demonstraram um desenvolvimento mais rápido (5 meses) e produção por safra semelhante a da espécie comercial do gênero Salicornia bigelovii, cultivada em várias partes do mundo (Foto 7).

Foto 7 - Detalhe de plantas de salicórnia prontas para serem colhidas no canteiro de cultivo em Aracati-CE
Foto 7 – Detalhe de plantas de salicórnia prontas para serem colhidas no canteiro de cultivo em Aracati-CE

Os testes em Aracati também demonstraram que um hectare de canteiro, irrigado apenas uma vez por dia, pode remover ao longo de uma safra de 155 dias, 21 quilos de amônio; 16,4 quilos de nitrato e, 4,4 quilos de fosfato dos efluentes que saem dos viveiros. Se, ao invés de apenas uma rega diária fosse mantido, durante 24 horas, um fluxo contínuo de efluentes nos sulcos do canteiro de salicórnias, algumas toneladas destes mesmos nutrientes poderiam ser removidas dos efluentes.

Atualmente os testes avaliam outras características, como a produção de matéria vegetal subterrânea (importante componente na fixação total de carbono da atmosfera) e a seleção de plantas com maior capacidade genética de produção individual de sementes, dentro da população cultivada. Esta última característica é importante para a produção de óleo comestível ou mesmo biodiesel.

Regiões desérticas ou semi-áridas, como parte do nordeste brasileiro, enfrentam problemas de falta de água doce, além de solos e lençóis freáticos salinizados que impedem o desenvolvimento da agricultura e da formação de pastagens para rebanhos. Nestas regiões, o cultivo de salicórnia irrigada com o efluente da carcinicultura marinha pode reduzir bastante o impacto desses efluentes nos estuários, além de possibilitar a criação de novos empregos e ampliar a disponibilidade de recursos alimentares para as populações carentes.

Outra importante característica desta nova “agricultura marinha” é que ela também pode ser uma ferramenta contra o aquecimento global, já que o cultivo de plantas em regiões onde antes não existia cobertura vegetal cria uma nova via de remoção do gás carbônico da atmosfera, através dos processos de fotossíntese e fixação de carbono na matéria vegetal produzida. Assim, em breve, quando encontrarmos a salicórnia ou seus produtos nas prateleiras dos supermercados brasileiros, à exemplo do que já ocorre em alguns outros países, lembraremos que essa maravilhosa planta, ainda pouco conhecida, contribui tanto para o meio ambiente como para a nossa saúde.


Links na internet sobre o cultivo e produtos da salicórnia
(1) Vídeo “ Greening of Eritrea” sobre o cultivo de salicórnia na primeira fazenda de água salgada do mundo localizada na Eritréia (África),
http://www.seawaterfoundation.org/articles.htm
(2) Produtos de salicórnia em diferentes parte do mundo
– Estados Unidos: “Sea beans” ou “ Sea Asparagus”, em Nova York hastes frescas em pacotes de 450g por US$ 9,99. (http://www.buycheese.com/Specialty_Foods.htm)
– Estados Unidos: “Sea Bean Salicornia”, hastes frescas em pacotes de 340g-US$ 26,20.
(http://www.melissas.com/catalog/index.cfm?Product_id=244&Info=NO)
– Estados Unidos: “Phytomer hydracontinue moisture quench mask”, creme com óleo de Salicórnia e outras plantas, 50 ml por US$ 29,50.
(http://www.skin-one.com/phytomer-hydracontinue-moisture-quench-mask.html).
– Inglaterra: “Scottish Samphire”, hastes frescas em pacotes de 100g por 1,99 libras esterlinas. (http://www.wildfoods.com)
– Holanda:“ Salicornia Iodine Powder (Food supplement)”, 35g por 14,83 Euros.
(http://www.pandalis.de/english/pflanzen/salicornia.html)
– China: “Fleshy tender stalks of samphire (salicornia)”, hastes frescas em pacotes de 100g. (http://www.alibaba.com/catalog/11097520/Salicornia.html)