O modelo praticado pela “agricultura industrial” teve sua origem nas pesquisas realizadas por Saussure, Boussingault e Leibig, no século XlX. As descobertas destes cientistas marcam o fim de uma fase, da Antigüidade até o século XIX, na qual o conhecimento agronômico era essencialmente empírico. A nova fase caracteriza-se por um período de rápidos progressos científicos e tecnológicos. Leibig é considerado o maior percursor da “agroquímica”, ao incorporar o conceito de que a produção agrícola é controlada pela disponibilidade de nutrientes (Lei do Mínimo) e de que a produtividade é proporcional a quantidade destes nutrientes adicionados quimicamente. Aliados aos novos equipamentos, pesticidas, herbicidas, seleção de sementes e melhoramento genético, a produtividade agrícola alcançou índices nunca dantes imaginados. Foi a chamada “Revolução Verde”.
A expansão da Revolução Verde foi apoiada pelos governos nacionais, empresas produtoras de insumos, e entidades internacionais, tais como a FAO, Banco Mundial, BID, e USAID, e foram criados sistemas educacionais e de crédito para suportar o modelo. A evolução dos transportes marítimos após a Segunda Guerra Mundial também permitiu que as trocas comerciais internacionais de commodities agrícolas chegassem ao nível de milhões de toneladas e bilhões de dólares anuais. Os benefícios acarretados por estas revoluções sobre a fome mundial são indiscutíveis.
As revoluções são uma ruptura brusca de um sistema vigente e a história demonstra que, muitas vezes, as revoluções são seguidas por excessos e retrocessos, até que uma nova estabilidade seja alcançada. O modelo adotado pela agricultura industrial começou a mostrar esgotamento a partir da década de 60, pela constatação de que acarreta intenso desflorestamento, perda de biodiversidade, erosão e perda de fertilidade dos solos, contaminação da água, animais e agricultores com agrotóxicos. Assim sendo, o último quarto do Século XX também presenciou o início da formação de movimentos de contra revolução nos novos sistemas agrícolas e industriais, que buscam um modelo de desenvolvimento mais sustentável, amplamente debatido na ECO-92, que resultou nas propostas contidas na Agenda 21. No setor agrícola, tais movimentos foram denominados genericamente de “agricultura orgânica”.
As duas maiores fontes de princípios gerais e requerimentos que se aplicam a agricultura orgânica em nível internacional são o Codex Alimentarius, da FAO (www.fao.org), e o IFOAM, International Federation of Organic Agriculture Movements (www.ifoam.org) , com cerca de 750 membros em 100 países.
O Codex Alimentarius, em suas Diretrizes para Produção, Processamento, Certificação e Comercialização de Alimentos Produzidos Organicamente, define a agricultura orgânica como “um sistema de manejo holístico da produção que promove e melhora a saúde do ecossistema, incluindo os ciclos biológicos e a atividade biológica no solo. A agricultura orgânica é baseada no uso mínimo de insumos externos e evita o uso de fertilizantes sintéticos e pesticidas. A agricultura orgânica não pode assegurar que os produtos sejam completamente livres de resíduos devido a poluição ambiental geral. Entretanto, usa métodos que minimizam a poluição do ar, solo e água. Os processadores e comerciantes de alimentos orgânicos aderem a padrões estabelecidos para manter a integridade dos produtos agrícolas orgânicos. O objetivo principal da agricultura orgânica é otimizar a saúde e produtividade das comunidades interdependentes do solo, plantas, animais e pessoas”.
Segundo o IFOAM a agricultura orgânica possui um “enfoque de sistema abrangente, baseado em uma série de processos que resultam em um ecossistema sustentável, alimentos seguros, boa nutrição, bem estar animal e justiça social. A produção orgânica é mais que um sistema de produção que inclui ou exclui certos insumos”.
Ao contrário dos alimentos “amigos do meio ambiente”, os alimentos classificados como orgânicos denotam a obediência a métodos específicos de produção e processamento. A utilização de pesticidas, fertilizantes sintéticos, preservativos sintéticos, organismos geneticamente modificados e irradiação são proibidos e inspecionados por certificadoras independentes.
A produção de alimentos orgânicos se baseia em três fatores básicos:
• Manejo Orgânico – Manejo sustentável, em conformidade com a legislação ambiental, promovendo a biodiversidade e o equilíbrio no ambiente, sem uso de fertilizantes solúveis, agrotóxicos, antibióticos ou outros aditivos que venham a prejudicar a qualidade orgânica dos produtos.
• Fator Econômico – A produção orgânica tem que ser economicamente viável.
• Fator Social – Um projeto orgânico tem que cumprir um papel de crescimento social dos atores envolvidos no processo.
As primeiras diretrizes desenvolvidas pelas comunidades dedicadas a agricultura orgânica foram as da inglesa Soil Association em 1967 e do IFOAM em 1980. As primeiras leis regulando a agricultura orgânica surgiram nos Estados Unidos, nos Estados do Oregon em 1974 e na Califórnia em 1979. A França adotou uma legislação em 1985 e a União Européia em 1991. Em 1992, a União Européia reformou a Política Agrícola favorecendo a agricultura orgânica e adotou instrumentos que estimulam pequenos fazendeiros a converter para agricultura orgânica provendo compensação financeira para as perdas econômicas ocorridas durante a conversão. No Brasil, em 1999, foi publicada a Instrução Normativa 007/99 do Ministério da Agricultura e em dezembro de 2003 foi aprovada a Lei 659 sobre a produção orgânica. Infelizmente, até o presente momento, a Lei 659 não foi regulamentada, por tanto ainda não é permitida a rotulagem de produtos orgânicos. Os produtos rotulados orgânicos que encontramos no supermercado são resultado de liminares na justiça tornando-se mais um paradoxo brasileiro quando verificamos que está permitida a comercialização de soja transgênica contrabandeada sem nenhuma identificação que a diferencie da convencional.
A expansão da agricultura orgânica é impulsionada pelo crescente ceticismo dos consumidores sobre a segurança dos alimentos convencionais e percepção sobre os danos ambientais da agricultura industrial. As crises como a contaminação dos alimentos por dioxina e doenças como as da vaca louca incrementaram a demanda por alimentos orgânicos. Diversas pesquisas determinaram que os alimentos orgânicos possuem níveis significativamente menores de contaminação por resíduos de pesticidas.
A agricultura orgânica é o setor que, atualmente, apresenta a maior taxa de expansão no setor de alimentos. A taxa de crescimento nas vendas dos produtos orgânicos tem crescido de 20-25% durante a última década. Entretanto, representa ainda menos de 1% das terras agrícolas e 1-2% das vendas mundiais de alimentos. O International Trade Centre estimou em US$ 16 bilhões as vendas de alimentos orgânicos em 2000, sendo US$ 8 bilhões nos EUA e US$ 7 bilhões na Europa. O mercado americano deverá alcançar vendas de US$ 20 bilhões até 2005. O produto orgânico geralmente obtém preços entre 10-20% superiores quando comparados aos mesmos produtos convencionais.
O último quarto do Século XX presenciou o início da “Revolução Azul”, quando os volumes produzidos pela aqüicultura alcançaram níveis significativos em relação às pescarias estagnadas. Apesar de ser uma prática milenar em diversos países, a aqüicultura industrial é recente e seu desenvolvimento vem seguindo o mesmo modelo desenvolvido pela filosofia da agricultura industrial, baseado na introdução intensiva de energia e insumos.
O desenvolvimento sustentável da aqüicultura tem sido alvo dos mais recentes debates, no entanto, o conceito muitas vezes é de difícil compreensão e relacioná-lo com a prática diária da produção aqüícola é ainda mais difícil. A aqüicultura orgânica é uma nova e inexplorada fronteira na direção do desenvolvimento sustentável, cujas regras, devido ao seu acentuado grau de inovação, ainda não estão de todo estabelecidas. Sua prática exige uma adaptação das regras existentes para a produção de produtos orgânicos provenientes da agricultura e produção animal, para o meio aquático, complicado pelas lacunas existentes no conhecimento geral do funcionamento dos ecossistemas aquáticos artificiais para produção de alimentos, principalmente no que concerne ao papel dos microorganismos e ao preenchimento adequado dos nichos alimentares disponíveis para o policultivo.
As diretrizes para aqüicultura orgânica ainda estão em desenvolvimento e ainda são poucos os exemplos de aqüicultura orgânica certificada em todo o mundo. Algumas similaridades existem entre as diretrizes de várias certificadoras, que permitem traçar um modelo básico com os pontos mais importantes (box abaixo). No Brasil, O Instituto Biodinâmico (IBD) emite anualmente as Diretrizes Para o Padrão de Qualidade Orgânico, que contém as normas a serem adotadas para se alcançar a Certificação Orgânica. Desde 2002 as Diretrizes trazem as normas para aqüicultura. O IBD iniciou as atividades em 1990 e é a única certificadora nacional que tem os produtos certificados aceitos nos três grandes blocos econômicos, na Europa, com o credenciamento ISO 65000 (através do DAP – Alemanha) e IFOAM; nos Estados Unidos, NOP, credenciamento USDA; e no Japão, credenciamento no JAS, através da OCIA.
Colaboraram: Cláudio Anders ([email protected]) e Francisco Ugayama, Fundação Mokiti Okada e Alexandre Alter Wainberg ([email protected])
Algumas Diretrizes para Aqüicultura Orgânica
– A aqüicultura orgânica é baseada no ponto de vista holístico que inclui fatores ambientais, econômicos e sociais observados tanto sob perspectivas globais quanto locais;
– A produção precisa conservar o ecossistema, a biodiversidade e proteger os consumidores;
– Os métodos de produção devem usar ingredientes naturais e minimizar a introdução de recursos externos. É proibido o uso de produtos químicos e agentes terapêuticos sintéticos, bem como organismos geneticamente modificados;
– A locação das unidades de produção de aqüicultura orgânica não deve afetar as características ecológicas funcionais dos ecossistemas do entorno tais como as áreas de pouso e nidificação de espécies migratórias, desova e migração de peixes, manguezais, etc;
– As unidades de produção de aqüicultura orgânica devem situar-se a distância apropriada de fontes poluidoras e outras formas de aqüicultura convencional;
– Devem ser tomadas medidas preventivas para proteção e conservação dos recursos hídricos da propriedade e do entorno;
– Os sistemas de cultivo devem ser projetados para permitir o desenvolvimento do comportamento natural dos organismos cultivados em relação a alimentação, movimento, descanso, e hábitos sociais e reprodutivos proporcionando espaço, abrigo, condições de fluxo e qualidade de água e sombreamento
. – Os sistemas de cultivo devem ser projetados de modo a promover a economia energética e reciclagem;
– A produção deve ser baseada nas condições naturais da água não sendo permitida a aeração contínua ou oxigênio líquido para aumentar a densidade dos organismos cultivados;
– As técnicas de cultivo devem ser governadas pelas necessidades fisiológicas e comportamentais dos organismos cultivados proporcionando nutrição adequada, conforto térmico e físico, proteção contra injúrias, saúde, medo, estresse;
– A qualidade da água em todos os seus parâmetros físicos, químicos e biológicos deve estar em conformidade com os requerimentos naturais dos organismos cultivados;
– A saúde dos organismos cultivados deve ser assegurada por medidas preventivas que objetivem alcançar um alto nível de resistência a doenças e infecções;
– Quando for necessário algum tratamento, devem ser escolhidos primeiramente os métodos naturais. Podem ser usados métodos físicos de controle (secagem, frio, etc.), compostos inorgânicos atóxicos (sal, hipoclorito de sódio, cal virgem, etc.); compostos orgânicos naturais atóxicos (ácido cítrico, etc.), substâncias naturais vegetais (alho, neem, etc.), homeopatia e pó de pedra;
– Os tratamentos devem ser aplicados de maneira a minimizar possíveis impactos negativos ao meio ambiente;
– Os organismos não devem ser sujeitos a nenhum tipo de mutilação; – As mortalidades devem ser retiradas sempre que possível. As carcaças devem ser depostas de maneira responsável de modo a assegurar que não haja risco de disseminação de organismos patogênicos ou contaminação ambiental;
– O estoque deve ser originário de empreendimentos orgânicos. Quando, comprovadamente, não existir suprimento adequado de sementes de origem orgânica, será permitida a introdução de sementes convencionais desde que estas adquiram pelo menos 90% de sua biomassa sob regime orgânico;
– Devem ser usados métodos naturais de reprodução que interferem minimamente no comportamento natural do organismo cultivado;
– Os objetivos da domesticação devem ser: obter um produto de boa qualidade, saudável, com bom crescimento e conversão alimentar; – Sempre que possível o estoque deve ser nativo/autóctone com preferência para as linhagens locais;
– Sempre que possível deve ser promovido o policultivo beneficiando sinergisticamente as espécies e promovendo o ciclo de nutrientes no sistema;
– Todas as rotinas que envolvem o manuseio do estoque cultivado, como por exemplo, colheita, classificação por tamanho, vacinação, transporte ou administração de tratamentos permitidos devem ser feitas com o objetivo de minimizar o estresse;
– A densidade de estocagem dos organismos cultivados deverá ser limitada àquela que proporcione o conforto e o bem estar permitindo aos organismos, manifestar seu comportamento natural em toda sua plenitude, minimizando a agressão e competição entre os indivíduos;
– A exclusão de competidores e predadores deve ser feita através de métodos de controle que não causem injúrias aos mesmos tais como telas, armadilhas, etc;
– A produtividade natural dos ecossistemas aquáticos cultivados pode ser aumentada pela aplicação de fertilização orgânica constituída por insumos e quantidades previamente aprovadas;
– Sempre que possível, os fertilizantes devem ser orgânicos certificados, No caso da indisponibilidade de fertilizantes orgânicos certificados podem ser usados fertilizantes orgânicos convencionais tais como compostos, humus de minhoca, etc, preferencialmente originários de operações de cultivo extensivo;
– A alimentação dos organismos cultivados deve explorar primeiramente o potencial dos alimentos naturais do ecossistema cultivado;
– O programa de alimentação deve ser projetado de modo a permitir o comportamento alimentar natural e o suprimento das necessidades nutricionais da espécie cultivada minimizando os desperdícios e os impactos negativos sobre o meio ambiente e a biodiversidade;
– As rações devem ser 100% compostas de sub-produtos orgânicos certificados e/ou produtos naturais provenientes de manejo sustentável dos recursos naturais, que deverão ter sua introdução em qualidade e quantidade aprovada. Devem ser evitados os ingredientes apropriados para o consumo humano direto. Não poderão ser utilizados ingredientes de origem animal originários da mesma espécie ou gênero que está sendo cultivada;
– Não são permitidos níveis inaceitáveis de metais pesados, resíduos de pesticidas e hidrocarbonetos nas rações suplementares conforme normas estabelecidas pela OMS – Organização Mundial de Saúde;
– Os métodos de abate/colheita devem ser projetados respeitando a fisiologia e o comportamento dos organismos cultivados e não devem causar sofrimento desnecessário;
– O objetivo principal do processamento é manter a qualidade do produto e a satisfação do consumidor. O processamento e/ou armazenamento de produtos orgânicos certificados é permitido somente em indústrias certificadas;
– Não é permitida a utilização de preservativos sintéticos;
– O processamento deverá assegurar a perfeita rastreabilidade do produto e que não haja contato ou mistura com produtos proibidos ou convencionais;
– Os sub-produtos do processamento deverão, preferencialmente, ser encaminhados para reutilização não podendo, no entanto, serem usados na alimentação direta da mesma espécie ou gênero. Quando os sub-produtos do processamento não puderem ser reutilizados na produção, deverão ser descartados responsavelmente de modo a reduzir os possíveis impactos ambientais negativos;
– Todo pessoal envolvido na produção, processamento e comercialização de produtos orgânicos deve receber treinamento sobre a filosofia do cultivo orgânico;
– As legislações trabalhistas locais e as normas trabalhistas internacionais estabelecidas pela OIT
– Organização Internacional do Trabalho, devem ser integralmente respeitadas.