Aqüicultura sustentável: A soja pode ser o caminho?

Por:
Luciene C. Lima – Escola de Veterinária
UFMG – e-mail: [email protected]
Jeffrey A. Malison – Animal Sciences Department,
University of Wisconsin-Madison


Apesar de ser uma atividade em franca expansão mundial, a aqüicultura vê sua evolução ameaçada, uma vez que ainda é grandemente dependente de proteí­na animal para a fabricação de rações. A quase totalidade desta proteína é oriunda de peixes capturados na natureza. Na busca por ingredientes alternativos mais baratos e igualmente protéicos, a soja aparece como o candidato de maior potencial entre as opções vegetais disponíveis. Embora possua qualidades nutricionalmente desejáveis, a soja contém componentes capazes de interferir negativamente na fisiologia de peixes. Entender e driblar os efeitos indesejáveis da soja, assim como definir as quantidades seguras deste ingrediente nas rações, são prioridades da aqüicultura na busca por sustentabilidade.


Em função da redução acelerada dos estoques naturais, o suprimento de organismos aquáticos para atender a demanda global inevitavelmente terá que vir através da aqüicultura. Reduzir custos de alimentação pela adoção de ingredientes alternativos, sem comprometer a qualidade das rações e o bom desempenho dos animais produzidos, em consonância com a manutenção da qualidade ambiental, é um dos grandes desafios à sustentabilidade da aqüicultura. Devido à sua grande dependência por proteí­na de origem animal, surge uma série de questionamentos acerca da capacidade da aqüicultura tornar-se realmente sustentável. A grande justificativa para a expansão da atividade é continuar atendendo ao mercado consumidor e, paralelamente, aliviar as pressões de captura de pescados voltada para a fabricação de farinha e óleo (7,15).

A proteína de peixe é o ingrediente principal das rações formuladas para organismos aquáticos, sobretudo para espécies carnívoras. Apesar de excelentes e fundamentais para as fases iniciais de crescimento dos peixes, dietas contendo grandes proporções do ingrediente protéico são comumente onerosas (14). A indústria aqüícola tem, portanto, tentado intensificar a busca por fontes alternativas de proteí­na para uso em suas formulações. Devido ao custo-benefício e pelo caráter renovável, a expansão do uso de proteí­na vegetal em rações para animais aquáticos deverá ser o fator-chave para o crescimento sustentável na aqüicultura. O grande percentual de proteí­na e adequado complexo de aminoácidos da soja Glycine max, faz dela um ingrediente altamente desejável em rações para peixes (4, 25). Entretanto, a incorporação de quantidades crescentes de soja nas dietas de peixes cultivados ainda é restrita em função de determinados fatores tais como a falta de informações técnicas sobre os níveis ótimos de soja que podem ser usados nas dietas das principais espécies cultivadas, a insuficiência de metodologias para melhorar a digestibilidade e utilização do produto pelo animal e, ainda, a ausência de informações completas sobre o efeito de fatores anti-nutricionais nos animais produzidos, com destaque para os fitoestrógenos.

A ação dos fitoestrógenos

Os fitoestrógenos são compostos estrogênicos não-esteróides que ocorrem naturalmente em diversas plantas, os quais exercem efeitos na fisiologia normal de animais terrestres, incluindo o homem (20, 26) e de peixes (23). Em humanos, quando consumidos como parte da dieta normal, os fitoestrógenos são benéficos inclusive auxiliando na prevenção de alguns tipos de câncer e osteoporose.

Entretanto, efeitos adversos como infertilidade, são associados com a ingestão excessiva e freqüente, por exemplo, de pílulas de genisteína (2). Deficiências reprodutivas têm sido documentadas em animais de laboratório, animais domésticos e animais silvestres que ingeriram grandes quantidades de plantas ricas em fitoestrógeno (1, 2). Camundongos fêmeas alimentadas com dietas contendo 2:1 de genisteína/daidzeina, apresentaram endometrite, aumento de volume uterino e queratinização do epitélio vaginal. Machos, por sua vez, tiveram redução da concentração de testosterona plasmática, atrofia do epitélio seminífero e de glândulas acessórias (5).

A soja contém altas concentrações de fitoestrógenos, mais conhecidos por isoflavonóides. Genisteína é o mais abundante e o mais biologicamente ativo dos isoflavonóides presentes na soja (6). Embora seja mil vezes menos ativo do que o estradiol endógeno (3, 4, 6), genisteína é capaz de desencadear, em peixes, efeitos tanto estrogênicos quanto anti-estrogênicos, que se traduzem em ações estimulatórias ou supressivas da função reprodutiva e do desenvolvimento destes animais. Um exemplo de efeito estimulatório da genisteína é a indução da sí­ntese de vitelogenina hepática, proteína precursora do vitelo.

Como ação supressiva, estrógeno de origem exógena pode reduzir a sí­ntese e liberação de gonadotropinas e, portanto, reduzir ní­veis circulantes de esteróides endógenos. Considerando tais efeitos, o uso de dietas que inibem o desenvolvimento reprodutivo seria claramente contra-indicado para a produção de matrizes. De modo oposto, estas mesmas dietas poderiam ser consideradas positivas para a produção de espécies que atingem maturidade sexual antes de alcançar tamanho adequado para comercialização.

Apesar da referida capacidade da genisteína em impactar o desempenho de peixes cultivados, o modo como estes animais são afetados não está suficientemente claro. A maioria dos achados em trabalhos publicados não são conclusivos: O estradiol exógeno revelou-se capaz de promover crescimento em perca amarela Perca flavescens (12, 13), estimular o crescimento cartilaginoso em tilápia Oreochromis spp. (16), inibir a transformação parr-smolt do salmão do Atlântico Salmo salar (11), e induzir vitelogênese em um grande número de espécies como o esturjão siberiano Acipenser baeri, truta arco-íris Onchorynchus mykiss e bass listrado Morone saxatilis (21). Estudos em que salmonídeos foram alimentados com dietas ricas em fitoestrógenos mostram resultados opostos quanto ao crescimento dos peixes (4,14). Trutas ingerindo dietas contendo genisteína a 500, 1.000 ou 3.000 ppm, não apresentaram diferenças significativas quanto ao consumo de ração ou quanto ao peso final. Por outro lado, a genisteína acelerou a maturação reprodutiva em machos e retardou o desenvolvimento gonadal das fêmeas (Foto). Houve indícios, ainda, de que a qualidade do sêmem tenha sido negativamente afetada, especialmente quanto à concentração e motilidade dos espermatozóides (6, 19). Outras pesquisas, porém, provaram que a farinha de peixe pode ser substituí­da pelo farelo de soja em rações extrusadas para o salmão do Atlântico, sem diferenças significativas no ganho de peso ou na conversão alimentar. Similarmente, um concentrado de proteí­na de soja, suplementado com os aminoácidos essenciais lisina e metionina, substituiu a farinha de peixes na ração de trutas arco-íris sem afetar a utilização dos nutrientes. (4, 24)

Brasil

Pesquisas relacionadas ao uso da soja na alimentação de peixes são, indubitavelmente, de grande interesse mundial e, para o Brasil, elas são particularmente estratégicas. O excepcional potencial brasileiro para a produção de peixes tem sido amplamente reconhecido, mas somente nos anos mais recentes o desenvolvimento racional da aqüicultura vem tornando-se realidade no Paí­s. Entre os fatores que têm contribuído para a impulsão da aqüicultura nacional destacam-se a seleção de espécies adequadas ao mercado; a adoção de tecnologias modernas e apropriadas à nossa realidade; o uso de rações formuladas de boa qualidade e, a preocupação com o desenvolvimento sustentável. Ressalta-se que as dificuldades para a obtenção de ingredientes protéicos de origem animal afeta-nos diretamente, já que dentre as espécies importantes para a aqüicultura nacional se incluem alguns peixes carnívoros, a exemplo do popular surubim ou pintado Pseudoplatystoma spp, que demandam ração com elevado teor protéico.

Além do potencial da aqüicultura nacional, o Brasil é o segundo maior produtor mundial de soja, o que significa que resultados positivos quanto ao uso desta planta, trariam duplo benefício ao país. A possibilidade da inclusão da soja em proporções crescentes nas dietas de organismos aquáticos não só beneficiaria as indústrias de ração, mas representaria uma redução de custos na aqüicultura, favorecendo o crescimento e a consolidação desta atividade no Brasil. Como grande exportador de soja, o país tem muito a lucrar com o aumento da demanda pelo produto.

Embora a aqüicultura venha ganhando projeção crescente na esfera zootécnica, concorrendo com tradicionais mercados de carne, os custos com a alimentação de peixes cultivados ainda representam um sério entrave à expansão da produção, sobretudo de espécies carnívoras. Em função da escassez de proteína animal, cada vez mais rara e cara, a produção de peixes convive com o risco de tornar-se insustentável. De um ângulo positivo, porém, vislumbra-se a possibilidade da soja tornar-se o ingrediente-chave na solução do problema. No entanto, são necessárias investigações mais completas e consistentes sobre o impacto da soja no desempenho de animais cultivados antes que dietas a base de soja sejam integralmente adotadas pela indústria aqüícola.


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