Por: Philip C. Scott – Universidade Santa Úrsula, e-mail: [email protected] e
Md Abdus Salam – Bangladesh Agricultural University, e-mail: [email protected]
Ambos, atualmente, no Institute of Aquaculture da Stirling University – Escócia
Um provérbio Bengalês diz “Mache Bhate Bangalee” o que se traduz para “Um Bengalês viceja quando há peixe e arroz” (note bem a ordem dos fatores). A importância do peixe e arroz nesta cultura é histórica e tradicional, implicando num importante papel para a economia e ecologia de Bangladesh. Quando uma dona de casa vai a feira, a sua primeira parada é na peixaria, para ver o que está disponível. A partir da escolha do pescado ela pode proceder à escolha das verduras e temperos acompanhantes. O Bangladeshi come pescado em média 5 dias por semana. O consumo per capita é algo em torno de 12 kg/ano. Se tivesse que dar nota aos alimentos fontes de proteína animal em termos de preferência, seria: peixe = 10, camarão marinho e Macrobrachium = 10, frango = 8, carne bovina = 7 e pato = 6.
Bangladesh está situada entre longitudes 88°01’ e 92°41 E e latitudes 20°34’ e 26°38’ N, com uma extensão territorial de 147.000 km2 e uma população de 120 milhões de habitantes. É aproximadamente igual em extensão ao estado do Ceará (146.348 km2 que conta com uma população de 6.809.290 (IBGE, 1996). A renda per capita é de apenas US$ 273.00, contra os US$ 5.430 verificadas em 97 para o Brasil.
Bangladesh é conhecido como o país dos rios. Seus recursos hídricos o colocam logo após a China e o Brasil em importância. Drena nada menos do que os bem conhecidos Ganges e Brama-Putra da Índia. Estes recursos tomam a forma de rios, lagoas, planícies de inundação com lagos de meandros e muitos, muitos viveiros de aqüicultura. A captura anual dos recursos pesqueiros varia de 750.000 a 1.500.000 ton/ano, o que é superior a pesca (registrada) em todo litoral e interior do Brasil (em média 850.000 ton/ano).
Biodiversidade
O clima tropical do delta de Bangladesh oferece uma oportunidade ecológica especial para a criação e reprodução de muitas espécies de peixes e crustáceos. A região sudoeste abriga o maior manguezal contínuo do mundo – o Sunderbans, uma das últimas regiões onde o ameaçado tigre de Bengala ainda consegue viver em liberdade. Para se ter uma idéia da biodiversidade, os mangues de lá possuem umas 40 espécies de plantas tolerantes a salinidade enquanto que no Brasil possuem tipicamente 4 ou 5 espécies. A maré invade o continente 2 vezes por dia até uns 80 km terra adentro. Chove muito. De 1.500 (nas regiões mais secas) até 5.000mm/ano, o que equivale ao dobro da pluviosidade registrada na Amazônia.
Bangladesh possui 23 espécies de camarões de água doce e salgada incluindo 10 espécies de Macrobrachium, que crescem nos rios e são comercializadas nos mercados locais (Tabela 2). Destas, o Macrobrachium rosenbergii é a espécie que cresce mais, e a única intencionalmente criada em viveiros.
O total da produção de Macrobrachium e Penaeus para os anos de 1994-1995 foi estimado em 34.030 toneladas, dos quais 93% foi produzido na região costeira. Camarões de água doce e salgada constituem um importante percentual em termos de valor das exportações pesqueiras de Bangladesh ( 7.75%, em 1997 ). Deste total, o Macrobrachium pescado em águas interiores ou criado em arrozais, contribui de maneira importante.
Percebendo a importância do Macrobrachium tanto no mercado interno quanto na pauta de exportações e com vistas a criar empregos na zona rural, o governo de Bangladesh fomentou a aqüicultura de águas salobras incluindo a construção de laboratórios de fornecimento de pós-larvas.
Método e época de criação
O método tradicional é conhecido como gher, que se refere ao viveiro de criação de camarões muitas vezes adaptado pela elevação dos taludes de um arrozal já existente, com a terra escavada de um canal periférico interior medindo aproximadamente 1.3m de profundidade por 3m de largura. Este canal mantém a água na época da seca. Os ghers normalmente recebem apenas a água das chuvas. Na região costeira hoje em dia, muitos ghers estão sendo substituídos por viveiros dedicados, já que a criação de camarões (Penaeus monodon) rende maior lucro que o cultivo de arroz. O Macrobrachium rosenbergii pode ser cultivado em monocultivo, ou em policultivo associado a carpas indianas e outras carpas nos arrozais. No sudoeste de Bangladesh, a época de criação começa com a coleta de pós-larvas em abril e vai de maio a janeiro, com a colheita a partir de novembro.
Preparo dos viveiros
Devido à alta pluviosidade, inundações e intenso tráfego humano sobre os taludes que servem como vias de acesso ou mesmo estradas, é gasto bastante tempo na manutenção e reparo destes, incluindo a retirada de ervas indesejáveis. O fundo do viveiro é capinado, e tratado com rotenona e no mesmo é passado uma rede de uma malha fina para retirar potenciais peixes predadores. Alguns secam o viveiro completamente. Uma semana após o tratamento com rotenona (importada), é aplicado calcário numa taxa de 45-50 kg/ha apenas na área do fosso, ou canal interior. Muitos criadores não usam o calcário e para a fertilização são aplicados 50-75 kg/ha de superfosfato triplo (SFT). Para aqueles que fazem policultivo de P. monodon e M. rosenbergii a prática comum é a adubação orgânica como o uso de torta de linhaça. O controle da fertilização é feito de maneira empírica. Num dia ensolarado, o criador entra na água e afunda os braços até o cotovelo e se a palma da mão não estiver visível, é uma indicação de que há alimento suficiente. Outros usam um copo de água para avaliar a água, caso esteja clara demais, aplicam 40-50 kg/ha de uréia. Se a água estiver ligeiramente verde ou marrom esverdeada, é considerada melhor. Alguns criadores monitoram a água pelo odor, outros mesmo pelo sabor. É importante ter idéia da escala. O tamanho médio do gher é de 3.000m2, os maiores (que são raros) são de 12.000m2 (1,2 ha) e muitos são de apenas 1.300m2. Os taludes são sempre aproveitados com plantações de frutíferas e hortaliças as mais freqüentes sendo o quiabo, a berinjela, abóboras, bananas, mamão e a tâmara.
Obtenção e estocagem de pós-larvas
Bangladesh chegou a ter 37 larviculturas de produção de pl’s (Pós-Larvas) de M. rosenbergii e P. monodon, algumas do Estado, outras particulares. Destas, 22 fecharam até o final de 1998 e a metade delas funcionava com sistema de recirculação de água (sistema fechado), juntas, tinham uma capacidade de produzir 184.7 milhões de pós-larvas/ano.
A concentração de criações de Macrobrachium rosenbergii está no Sudoeste de Bangladesh, no distrito de Bagherat, divisão de Kuhlna. Nesta região, ainda há abundância de pós-larvas nos rios e estuários. A coleta/captura de pós-larvas tanto de M. rosenbergii como de P. monodon engaja cerca de 80.000 pessoas incluindo muitas mulheres, crianças e sem-terras. Esta coleta tem pressionado os estoques naturais de modo que, embora ainda abundantes, já ocasionam capturas reduzidas nos braços superiores de muitos rios. Esta coleta de pl’s foi incentivada pelos donos de ghers na região costeira na década de 80. A coleta de pl’s nas regiões mais marinhas requer experiência, conhecimento dos ciclos lunares e das marés, além de ser um trabalho árduo.
A rede de arrasto é passada, e a cada 15 minutos ela é trazida à margem para ser feito a seleção das pós-larvas. Neste processo, apenas 1,5% das pl’s são aceitas pelos atravessadores sendo o resto jogado fora, deixado a secar nas areias. Para coletar uma pós-larva, estima-se que 14 outros camarões, 21 peixes e 1.631 organismos de zooplancton são destruídos. Inicialmente as pl’s de Macrobrachium tinham importância secundária, mas hoje são igualmente valorizadas. É comum instalar abrigos para as pl’s nos viveiros geralmente constituídos de galhos verdes, bambus, folhas de tamareiras, ou de coqueiro. Os criadores compram as pl’s de atravessadores. As pl’s de Golda (como é conhecido o M. rosenbergii) são reconhecidas por suas características listras escuras no ‘dorso’. Devido à má qualidade, baixa sobrevivência e maior preço, as pl’s oriundas de larviculturas são geralmente preteridas. Isto talvez explique o fechamento de muitas larviculturas abertas durante o boom da carcinicultura em Bangladesh. São estocadas 30.000 a 37.000 pl’s /ha nos viveiros. 74% dos criadores estocam adicionalmente peixes da região (Tabela 3) como o Catla catla, o rohu (Labeo rohita), o shar puti (Puntius gonionotus) e a carpa prateada (Hypophthylmichthyes molitrix).
Engorda e despesca
A engorda segue um regime com manutenção da produtividade natural da água através da fertilização.
A alimentação suplementar é fornecida sob a forma de farinha de trigo na taxa de 1kg por cada 5.000 pl’s no viveiro sendo a quantidade aumentada gradativamente. Após 2 meses, quando as pl’s se tornam juvenis, é fornecido carne do molusco de água doce Paila globosa na taxa de 100-150kg por hectare/dia. Também é usado o brunido de arroz, farelo de arroz, farelo de trigo, e torta de óleo vegetal. Apenas no último mês é fornecido ração peletizada de “acabamento” na taxa de 5kg/ha/dia. (Tabela 4)
A despesca é normalmente feita com uma tarrafa de modo contínuo umas 10 a 12 vezes durante o ciclo, mais intensivamente em novembro e dezembro. Os camarões são lavados e levados frescos para as peixarias do mercado local a fim de serem vendidos frescos ou posteriormente serem levados às plantas beneficiadoras.
Impacto ambiental
Bangladesh é um país que está seriamente ameaçado pelo fenômeno do aquecimento global e se o nível do mar subir, grandes extensões de seu território submergerão, o que faz o uso da terra ser muito disputado. O desenvolvimento tecnológico trouxe a poluição na forma de pesticidas usados nas plantações e a poluição industrial. Some isto à necessidade de controlar as freqüentes enchentes ocasionadas pelo regime de monções na região. Assim, através de drenagens de terrenos, construção de diques, comportas e outras estruturas reguladoras de fluxo de água, resulta uma diminuição na abundância dos recursos pesqueiros. Para muitos proprietários de terra não faz mais sentido “lutar contra a maré” sendo melhor deixar a água invadir (de todos os lado) seus terrenos outrora drenados e plantados com arroz para realizar a criação de camarões de águas salobras como o P. monodon e o Macrobrachium rosenbergii. A pecuária, outrora atividade mais freqüente e associada às plantações de arroz, declinou em função da transformação dos arrozais em viveiros de aqüicultura inundados a maior parte do tempo. A qualidade da água nos rios e canais continua sendo degradada mesmo com a aqüicultura, pela adição de rotenona, calcário, fertilizantes diversos além de restos de alimentação suplementar esgotado das criações.
O uso do molusco Paila como alimentação suplementar para o Macrobrachium também gera reclamações ambientais, pois é coletado aos milhares, sua concha retirada e amontoadas às toneladas nas beiras de estradas causando mal cheiro e facilitando a propagação de mosquitos. Certamente Paila tem sua função ecológica, provavelmente servindo de alimento para aves e outros animais. Os rejeitos do beneficiamento e processamento industrial (cabeças, vísceras etc..) das 20.000 toneladas de camarões e Macrobrachium que Bangladesh exportou em 1992-1993 perfizeram 11.400 toneladas que foram lançados in natura nos rios causando transtornos de saúde na região.
Impacto Sócio-econômico
No Sudoeste de Bangladesh há o que se chama de “revolução gher”. A economia local que era basicamente de subsistência, dependente de variedades nativas de arroz boro e aman, passou cada vez mais a adotar a criação de Macrobrachium, localmente conhecido como Golda. De fato virou uma febre, mas uma febre que gerou enorme dinamização sócio-econômica nas regiões produtoras, bem visível no comércio em geral. O Golda se tornou indubitavelmente uma alternativa muito mais atraente do que a rizicultura tradicional usando variedades de arroz de sequeiro (aman) e irrigado (boro) que embora nativas, de baixa produtividade. A alternativa na rizicultura seria adotar cultivares melhoradas desenvolvidas pelo Instituto Internacional de Pesquisa do Arroz (IRRI) que embora de ciclos mais curtos e muito mais produtivas, exigem insumos caros como pesticidas e adubos químicos, um lado não tão amplamente divulgado pela revolução verde. As famílias que investiram nos ghers as criações de Golda conseguiram capitalizar rapidamente, e passaram a ser compradores de arroz mesmo sendo este importado. Analistas internacionais vêem isto com certa preocupação. Com o aumento no número de viveiros e o sucesso da atividade houve uma conseqüente diminuição em torno de 50% da área plantada de arroz e uma diminuição na produção de leite. Isto potencialmente fragiliza o país em termos de segurança alimentar.
Os ghers passaram a ser construídos em maiores números, invadindo inclusive as áreas de baixadas ou brejos inundáveis e lagos de meandros conhecidas como beels. A maioria dos beels, embora muitas vezes estivessem em propriedades particulares, por serem tradicionalmente considerados como áreas ‘improdutivas’ eram tidas de fato como áreas comuns, quase que de domínio público. O povo usava o beel como local para pesca, coleta de lenha, de capim para gado, ou mesmo de plantas aquáticas comestíveis. Com o cerco de ghers, a construção de estruturas reguladoras de fluxo d’água e captura de alevinos e pl’s, aos poucos os beels foram perdendo sua produtividade pesqueira natural. Mesmo rotas de migração de peixes para os beels foram perdidas ou alteradas. A possibilidade de progresso econômico que os ghers representam, fez com que muitos proprietários fechassem o acesso do público aos beels e os transformassem num ghers produtivos.
Em entrevistas com a população, todos reconhecem o “fenômeno gher” e embora muitos reclamem deste ângulo negativo causado pela expansão dos ghers o consenso geral é de que a região está melhor e mais próspera agora do que antes. Houve incremento no número de empregos (e muitos subempregos) associado ao desenvolvimento da aqüicultura, como catadores de pós-larvas, transportadores, tarrafeiros para despesca, vigias noturnos, assistentes para arraçoamento dos ghers, catadores de moluscos etc… Ainda mais: em geral aqueles que trabalham para as aqüiculturas ganham mais do que os empregados nas lavouras de arroz. Do lado negativo, houve também um incremento na agiotagem e endividamento de pequenos lavradores. Muitas mulheres, voluntariamente (ou não), empenharam suas jóias, um dos poucos pertences que uma Bangladesh é permitida sem discussão, para investir na transformação do terreno da família num gher.
Problemas e Tendências
O desenvolvimento da aqüicultura em Bangladesh ainda está na curva ascendente e três regiões produtoras se destacam. A primeira se encontra numa região mais costeira, imediatamente ao norte dos manguezais Sunderbans, protegidos por lei. Essa região, outrora também ocupada por manguezais, é onde atualmente se concentra a criação de P. monodon. Nesta região, tradicionalmente de rizicultura, as criações começaram como ghers, consorciando M. rosenbergii e P. monodon com arroz, numa época do ano. Gradativamente, a rizicultura diminuiu e a tendência foi deixar os viveiros com água a maior parte do ano, criando condições para o monocultivo do P. monodon.
Um pouco mais ao norte e mais afastado da região costeira, mas ainda na região de águas salobras, é identificado uma segunda área de cultivo, tradicionalmente de rizicultura, mas onde atualmente as criações consorciam o M. rosenbergii e P. monodon durante a estação seca (inverno) e cultivando o arroz na estação chuvosa (verão). O arroz é cultivado no platô central do gher, na época da seca.
A terceira região está ainda mais ao norte e nordeste do Sunderbans, onde definitivamente termina a influência da água salobra. Aqui começa a zona de Golda em monocultivo ou consorciado com peixes nos ghers. As três regiões apresentam aparências distintas na imagem de satélite da região.
Até poucos anos atrás o desenvolvimento da carcinicultura foi impulsionado exclusivamente pelos próprios criadores. A criação do P. monodon foi iniciada por proprietários rurais residentes no Sun-derbans que se dispuseram a investir o tempo e cuidado necessários para uma produção mais lucrativa. Os proprietários rurais não residentes (de cidades ou vilas longe de suas terras) preferem investir apenas no cultivo do arroz, que exige menos sua presença, limitada à época do plantio e da colheita.
Nos últimos anos, no entanto, os criadores pioneiros de P. monodon tiveram problemas com vírus na criação e as soluções para isto, são aparentemente caras. Pelo fato dos criadores de Macrobrachium não terem tido este problema e o lucro da atividade ser bem maior do que a rizicultura (embora menor do que na criação de P. monodon). sua “fronteira aqüícola” continua expandindo.
As enchentes são comuns em Bangladesh e aí está uma outra vantagem de criar o camarão ao invés do arroz. Uma enchente pode até levar a produção de camarão do viveiro, mas muitos exemplares acabam ficando no fundo ou mesmo param na terra do vizinho. De qualquer jeito, sobra o alimento, enquanto que para o arroz, os efeitos da enchente significam frustração e perda total. Um arroz quase maduro, pronto para ser colhido pode ficar, irremediavelmente estragado pelo excesso de água. Por este motivo, poucos são contrários à criação de Macrobrachium e criadores mais engenhosos já estão instalando um cercado de rede de um metro de altura ao redor de seus viveiros, para fazer face às pequenas enchentes e não perder seus preciosos Goldas.
Devido ao grande impacto positivo, social e econômico, representado pelo Golda em Bangladesh, sua criação tende a aumentar. Por isto, verificamos que há necessidade de uma variedade de estudos técnicos desde manejo de viveiros, arraçoamento, extensão rural, aspectos de localização e outros para que a atividade continue a oferecer os benefícios já alcançados para a região.