Produtos sofrem com as mortalidades decorrentes do Vírus da Mionecrose Infecciosa (IMNV)
Por: Alberto J.P. Nunes, Ph.D.
[email protected]
Pedro Carlos Cunha Martins, D.Sc.*
[email protected]
Tereza Cristina Vasconcelos Gesteira, Ph.D.*
[email protected]
Instituto de Ciências do Mar (Labomar/UFC)
Centro de Diagnóstico de Enfermidades de Camarão Marinho (Cedecam)*
Especialistas da Universidade do Arizona identificaram o vírus responsável pelas grandes mortalidades que vêm ocorrendo nos viveiros de camarão no Nordeste. É a presença do “Vírus da Mionecrose Infecciosa” ou INMV (da sigla em inglês). Assim sendo, não se justifica mais denominarmos a doença de NIM – Necrose Idiopática Muscular, visto que “idiopatia” se refere a uma doença cuja origem é desconhecida. O artigo a seguir foi elaborado pelos pesquisadores do Centro de Diagnóstico de Enfermidades de Camarão Marinho da UFC – Universidade Federal do Ceará, e através dele, conheceremos o início e a evolução desta doença até os dias atuais, detalhes do quadro clínico e dos gatilhos que possivelmente permitem que o vírus se estabeleça. Os autores discutem ainda algumas estratégias de manejo para lidar com este agente infeccioso, cujos prejuízos à indústria ao logo do ano de 2003 foram estimados em 20 milhões de dólares.
As enfermidades fazem parte do processo de qualquer segmento de produção animal. Na carcinicultura marinha, em resposta ao desenvolvimento de técnicas de diagnóstico de enfermidades e a expansão territorial da atividade no mundo, novas epizootias de ordem viral são identificadas a cada ano. Em outros países, as infecções virais no cultivo de camarões são freqüentes e fazem parte da rotina diária de manejo das operações de cultivo. No Brasil, com exceção dos vírus asiáticos, Mancha Branca “White Spot Syndrome Virus” (WSSV) e Cabeça Amarela “Yellow Head Virus” (YHV), todos as outras enfermidades virais de significância econômica presentes em camarões peneídeos cultivados já foram registradas no país. Mais recentemente, um novo vírus denominado de Vírus da Mionecrose Infecciosa “Myonecrosis Infectious Virus” (IMNV) foi encontrado em fazendas de engorda de camarão marinho da Região Nordeste. O presente artigo relata os acontecimentos que levaram à identificação desta nova doença, revisando sua sintomatologia, prováveis gatilhos de manifestação, rotas de propagação geográfica e principais estratégias de manejo adotadas.
Antecedentes
O primeiro relato do Vírus da Mionecrose Infecciosa (IMNV) surgiu em uma fazenda de engorda de camarão marinho localizada no município de Parnaíba, Estado do Piauí em setembro de 2002. Os camarões moribundos exibiam uma perda da transparência do músculo abdominal e uma incidência persistente na mortalidade diária a partir de 7 g (Fig. 1). A primeira hipótese associou este quadro clínico com uma enfermidade denominada de Doença do Algodão causada por microsporídios, parasitas intracelulares. A Doença do Algodão pode ser transmitida através de pós-larvas infectadas por esporos ou por hospedeiros (peixes e camarões selvagens) presentes em canais de adução da fazenda. Estes esporos invadem as células do tecido muscular do camarão levando a uma opacidade leitosa generalizada da cauda. A Doença do Algodão apresenta alta prevalência no Golfo da Tailândia e afeta os cultivos do Penaeus monodon e do Fenneropenaeus merguiensis.
Em dezembro de 2002, amostras encaminhadas a Universidade do Arizona (UAZ) descartaram a presença de Microsporidea. Análises de Reações de Polimerase em Cadeia (PCR) mostraram-se negativas para os vírus da Mancha Branca (WSSV), vírus da Síndrome de Taura (TSV), Parvovírus Hepatopancreático (HPV) e Vírus da Cabeça Amarela (YHV). Contudo, a análise foi positiva para a Infecção Viral na Hipoderme e Necrose do Tecido Hematopoético (IHHNV). As evidências porém, não indicavam nenhuma associação entre a sintomatologia observada e o IHHNV. Este vírus é considerado endêmico no L. vannamei e no Brasil sua presença não causa grandes impactos nas populações infectadas. Posteriormente, análises histopatológicas realizadas na UAZ apontaram para a Síndrome do Músculo Grampado (Cramped Muscle Syndrome – CMS) devido aos típicos sintomas de necrose muscular do abdômen e cefalotórax associados a esta síndrome. A CMS tem como causa fatores ambientais ou nutricionais, deficiência de vitamina B e desequilíbrio na relação Ca:Mg da água.
No primeiro trimestre de 2003, o quadro chuvoso acima do normal na fronteira dos Estados do Piauí e Ceará, provocou alterações ambientais significativas. Foi observada na região uma grande amplitude térmica diária da água de cultivo, além de variações bruscas na salinidade, excesso de partículas em suspensão e uma floração diferenciada atípica da comunidade fitoplanctônica. Desta forma, os relatos da ocorrência dos sintomas característicos da enfermidade foram se intensificando em fazendas do Piauí e ampliando além deste Estado, chegando ao litoral oeste do Ceará, em fazendas localizadas nos municípios de Chaval, Camocim e Acaraú.
Neste período, tentativas para identificar parâmetros em comum nas fazendas afetadas pela enfermidade foram mal sucedidas. Não foi encontrada correlação entre densidade de estocagem de camarão, tipo da água de cultivo (fluvial, salobra, marinha), fontes de ração e pós-larvas. Na época, devido a uma elevação progressivamente crescente, inesperada e descontrolada da doença, muitos produtores já anteciparam que a atividade estava diante de um surto epidêmico.
Devido ao provável enriquecimento da água de cultivo com matéria orgânica particulada e nutrientes resultantes do excesso de chuvas, foi detectada uma floração da comunidade fitoplanctônica. Análises realizadas na Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG) em amostras de água coletadas em maio, julho e agosto de 2003 em três fazendas localizadas nos Estados do Piauí e Ceará, identificaram uma alta concentração de tricomas de cianobactérias filamentosas pertencentes aos gêneros Pseudanabaena e Limnothrix (Fig. 2) Enquanto os níveis considerados normais no cultivo de camarão para cianobactérias é de no máximo 40.000 células/mL, somente para estes gêneros foram observadas concentrações variando de 150.000 a 280.000 células/mL. Em uma das amostras foi também detectada floração do dinoflagelado Scrippsiella trochoidea (123.000 células/mL).
Problema com mortalidade persistente de camarões em viveiros de P. monodon na Austrália, teve como principal causa a floração de cianobactérias (Smith, 1996). Os animais apresentavam sintomas como letargia, queda no consumo alimentar, cauda esbranquiçada, hepatopâncreas pequeno e pálido, crescimento reduzido e dificuldade de muda. As mortalidades ocorriam de forma progressiva ao longo de vários meses, com uma intensificação da sintomatologia em indivíduos com peso médio entre 15 e 25 g. As mortalidades coincidiam com a floração de oscilatórias. Trabalhos realizados no México sobre a toxidade da cianobactéria Schizothrix calcicola no L. vannamei detectaram grave desordem em tecidos do trato digestório do animal, afetando a absorção e assimilação dos alimentos (Pérez-Linares et al, 2003). Com base nessas observações, foi levantada a hipótese de que a condição observada em fazendas do Brasil era compatível com a sintomatologia de uma enfermidade denominada de Enterite Hemocítica, resultante da floração de algas filamentosas. A Enterite Hemocítica causa a necrose e descamação da mucosa epitelial do trato digestório médio do camarão, substancial inflamação das áreas afetadas, atrofia e necrose do hepatopâncreas, além de septicemia. Floração de dinoflagelados conhecidos como “marés vermelhas” são comuns na estação chuvosa em certas áreas de cultivo de camarão na Região Nordeste (Fig. 3). Florações massivas de dinoflagelados já foram relatadas em diversas áreas de cultivo de camarão marinho, na Ásia e América Latina (Alónso-Rodriguez e Páez-Osuna, 2003). Condições climáticas ou manejo inadequado (fertilização, alimentação) podem desencadear este fenômeno.
Em maio de 2003, montagem úmida das brânquias e apêndices de camarões moribundos conduzida pelo Centro de Diagnóstico de Enfermidades de Camarão Marinho (Cedecam/Labomar) identificaram a presença de infestações de Zoothamnium sp. (Fig. 4), além de microalgas filamentosas, caracterizando uma condição de “fouling”. A cobertura das brânquias interfere no processo respiratório do animal, podendo levar a morte. Cortes histológicos da cauda também detectaram a presença de esferóides ectópicos do órgão linfóide (EOL) (Fig. 5). Os EOL resultam de um processo de fagocitose (mecanismo de defesa não específico do camarão) realizado no órgão linfóide, que tem como objetivo englobar o invasor e expulsá-lo do corpo do animal. A presença de esferóides fora do órgão linfóide é denominado de ectópico (fora do local característico), configurando a expulsão do agente invasor. Tipicamente EOL ectópicos resultam de infecções virais ou bacterianas.
Em junho de 2003 laudo da UAZ corroborou as observações prévias. Foi verificada a presença de EOL, contudo sem a identificação de sua causa específica. O laudo relatou a presença de EOL com graus de severidade variando de moderado a alto. Segundo este diagnóstico, os graus de severidade observados podem levar a possíveis perdas na produção de camarão ou serem potencialmente letais caso não venha ser adotado nenhum tratamento ou mudança no manejo. As seguintes hipóteses da etiologia foram levantadas: (1) tóxica (neuromuscular), (2) nutricional (deficiência de vitamina E resultante de rancificação do alimento); (3) física (estresse físico ou ambiental extremo), e; (4) viral ou bacteriana.
Posteriormente, em julho de 2003, bioensaios de infectividade, utilizando tecidos de camarões apresentando a sintomatologia compatível com a necrose muscular, foram conduzidos pela UAZ. Camarões SPF (livre de patógenos específicos) de 3,5 g da espécie L. vannamei, quando expostos a tecido contaminado administrado por via oral e injeção intramuscular, desenvolveram uma alta prevalência de necrose muscular após 12 dias de cultivo, apesar de não ocorrer mortalidade. Análises histopatológicas dos animais positivos mostraram lesões no tecido muscular semelhantes às observadas em fazendas do Nordeste com a presença da doença. Dentro deste novo quadro, confirmou-se a transmissão horizontal da patologia, contudo foram mantidas ainda três hipóteses para causa do problema: (1) desequilíbrio mineral no alimento; (2) toxina no alimento, e; (3) vírus. Em setembro de 2003, a enfermidade foi denominada de Necrose Idiopática Muscular (NIM), em virtude do agente etiológico não estar definido.
No final de setembro de 2003, um segundo estudo de transmissão conduzido pela UAZ confirmou os resultados alcançados no primeiro bioensaio. Esta ratificação deu fortes indícios para hipótese viral. Em outubro de 2003, trabalhos para isolamento e caracterização do vírus foram iniciados. No dia 06 de fevereiro de 2004, em uma palestra realizada no Estado do Rio Grande do Norte, Dr. Donald Lightner da UAZ confirmou a origem viral da patologia através de microscopia eletrônica e análise genômica (Fig. 6).
Este novo vírus denominado de vírus da Mionecrose Infecciosa (Infectious Myonecrosis Virus – IMNV) tem formato esférico com 40 nanômetros, apresentando genôma de RNA (ácido nucléico), pertencente a família Totiviridae. Porções do ácido nucléico do vírus foram clonadas e seqüenciadas. Sondas moleculares para realização de RT-PCR foram desenvolvidas (Lightner et al, 2004) e já estão disponíveis no mercado.
Quadro Clínico
A típica sintomatologia dos camarões afetados pelo IMNV é a mionecrose, necrose dos músculos estriados do abdômen e do cefalotórax. No animal, estas condições são manifestadas através da perda da transparência da cauda, que se torna opaca, com áreas de aspecto leitoso (Fig. 7) e em estágios mais avançados o apodrecimento das áreas afetadas. O esbranquecimento pode iniciar no quinto ou sexto segmento abdominal ou ainda nas áreas laterais e distais da cauda, próximo aos pleópodos. Quando na fase aguda, a mionecrose apresenta-se como sendo coagulativa com alguns edemas entre as fibras musculares necrosadas. De acordo com o grau de severidade, a opacidade extende-se progressivamente em direção ao telson e aos urópodos (leque caudal). As lesões podem apresentar-se multifocais ou focais (restritas a uma única área, Fig. 8). Após a fase aguda, em um estágio crônico, as lesões são acompanhadas de uma liquefação dos músculos fibróticos necrosados. Neste estágio, os músculos e os apêndices afetados exibem uma coloração avermelhada, dando uma aparência de camarão cozido. Devido a este aspecto, muitos produtores apelidaram os indivíduos moribundos de “camarão zumbi” ou “camarão morto-vivo”, pois mesmo com aparência de morto (cauda avermelhada) e debilitado, os animais continuavam vivos por vários dias (Fig. 9). Em alguns casos, a sintomatologia pode oferecer indícios do grau de severidade do IMNV na população cultivada (Tabela 1 e Fig. 10). Contudo, não deve ser utilizada como referência isolada, pois a mortalidade pode acentuar-se mesmo nas fases leve e moderada da enfermidade.
A
B
C
Quando acometidos com o IMNV, os camarões podem ainda exibir redução ou suspensão no consumo alimentar, perda do volume do hepatopâncreas, ausência ou redução de lipídeos, dificuldade no endurecimento da carapaça e natação errática. Dependendo das condições de cultivo, os sintomas podem ser identificados ainda na fase de berçário, logo após a estocagem dos animais. Camarões enfermos apresentam-se extremamente debilitados, grampando facilmente em sua captura e manuseio. Em alguns casos, pode-se observar uma deformidade do intestino do camarão, semelhante a um “S” (Fig. 11). Os animais infectados podem também se apresentar magros e mal nutridos, com caparaça “frouxa”. O órgão linfóide sofre uma hipertrofia, mudando sua forma de gotícula para ungulada (pata de cavalo).
Mortalidade
A mortalidade de camarões acometidos pelo IMNV pode ocorrer ao longo de todo ciclo de engorda, iniciando-se já na fase de berçário. Porém, este fenômeno somente se acentua com o surgimento dos sinais clínicos marcantes da enfermidade, em períodos de estresse fisiológico (muda) e ambiental (deterioração da qualidade da água e do solo) e com a proliferação de camarões moribundos ou mortos no ambiente de cultivo.
Ao contrário de outros vírus que exibem uma maior agressividade nos dois primeiros meses de engorda, como o da Taura, o período de elevada mortalidade dos indivíduos acometidos com o IMNV coincide com uma fase de alto consumo de ração, tendo um forte impacto sobre o fator de conversão alimentar (FCA) e a produtividade anual do empreendimento (Tabela 2). Portanto, comparativamente, os prejuízos e os riscos econômicos resultantes do IMNV são tão elevados quanto de outras doenças virais, devido a perda de biomassa ocorrer em uma fase avançada de cultivo, após o consumo de praticamente 80% do volume global de ração do ciclo de engorda.
O IMNV é caracterizado por três fases distintas de mortalidade. A primeira fase caracteriza-se pelo reduzido índice de mortalidade de camarões que apresentam sintomatologia leve em baixa porcentagem da população cultivada (< de 10%). Na fase subseqüente, denominada de aguda, ¼ ou mais da população cultivada exibe sinais clínicos evidentes do IMNV, com nível de severidade variando de moderado a grave, resultando em elevada taxa de mortalidade. Esta fase é mais comum em indivíduos com peso a partir de 6 a 7 g, prolongando-se até sub-adultos de 9 a 10 g (Fig. 12). Este estágio geralmente progride para uma forma crônica marcada pela baixa, mas persistente mortalidade dos indivíduos infectados. Observam-se sintomas da enfermidade em um baixo percentual da população (< 5%), sendo estes provavelmente os indivíduos que sobreviveram a fase aguda.
Os viveiros afetados pelo IMNV apresentam uma queda de 20% a 50% sobre as taxas históricas de sobrevivência. Normalmente para camarões de 12 g são alcançados níveis de sobrevivência final que variam de 35% a 55%. Em áreas severamente impactas pelo IMNV, taxas de sobrevivência de 50% a 55% são consideradas aceitáveis em densidades de estocagem de até 60 camarões/m2. As mortalidades geralmente se acentuam somente após dois ou três ciclos de engorda depois da primeira manifestação dos sinais clínicos da enfermidade, progredindo lentamente ao longo dos ciclos.
Os produtores utilizam o número de camarões mortos coletados de bandejas de alimentação como um indicativo geral da condição de sobrevivência da população estocada. (Fig. 13). Este parâmetro auxilia na detecção do agravamento da doença no viveiro, apesar de nem sempre os indivíduos morrerem em bandejas.
Distribuição Geográfica
Os primeiros registros do IMNV ocorreram no Estado do Piauí, município de Parnaíba durante o período seco no final do ano de 2002. Cerca de quatro meses depois, na estação chuvosa, a enfermidade começou a se manifestar nas fazendas de engorda localizadas nos municípios de Cajuzeiro da Praia e Luis Correia, no mesmo Estado, distantes cerca de 20 km do ponto inicial de detecção. No Estado do Ceará, os primeiros sintomas foram registrados nos municípios de Chaval, Camocim e Acaraú, de seis a oito meses após o primeiro registro (Fig. 14). A seguir, a enfermidade foi disseminada para o litoral leste do Ceará, onde estão localizados os municípios de Fortim e Aracati, distante 600 km do ponto inicial de detecção. Ainda no segundo semestre de 2003, em outubro e novembro, tiveram início os relatos sobre a ocorrência do IMNV no Estado do Rio Grande do Norte, nos municípios de Pendências e posteriormente em Mossoró e nas fazendas localizadas no entorno de Natal. Em abril e maio de 2004, a sintomatologia do vírus foi relatada em fazendas dos Estados da Paraíba e Pernambuco. Mais recentemente, o vírus alcançou fazendas na região de Canguaretama no Rio Grande do Norte. Deve-se ressaltar que não há informação precisa se a propagação geográfica do IMNV seguiu exatamente a rota descrita ou se os relatos do vírus tornaram-se mais públicos, conseqüentemente despertando o interesse dos produtores para sua sintomatologia. Sabe-se que logo após os primeiros relatos da enfermidade no Piauí, já podiam ser observados camarões com sintomatologia semelhante no litoral leste do Ceará, contudo geralmente passavam despercebidos devido ao pequeno grau de ocorrência. Uma das hipóteses inicialmente levantadas era que a estação chuvosa no litoral da Região Nordeste, que tipicamente segue a rota Norte-Sul, poderia ser um agente dispersor da doença nas fazendas. Relatos sugerem que mesmo na década de 80, camarões nativos já apresentavam sintomas semelhantes, em particular durante períodos de chuva excessiva.
Gatilhos para Infecção
As enfermidades de um modo geral se manifestam quando ocorre algum fator causal de estresse sobre os indivíduos cultivados. Os mais comuns referidos na literatura especializada podem ser de ordem ambiental, operacional ou biológica, ou a combinação dos três. Ao revisar as condições que propiciam o surgimento e a proliferação do IMNV, podemos referir alguns fatores.
Muda: Nos períodos de muda, compreendendo as fases de pré-muda tardia, muda e pós-muda, os animais encontram-se fisiologicamente frágeis. Nesses estágios, ocorre um grande acúmulo de água pelo animal para possibilitar o crescimento. O animal encontra-se em jejum fisiológico, portanto, a atividade alimentar é suspensa e os camarões tornam-se sensíveis a alterações ambientais e imunodeprimidos. Experiência prática relata uma maior incidência de camarões mortos devido ao IMNV durante estes estágios. Antes e depois destas fases é recomendado intensificar as refeições e pontos de alimentação, melhorar as condições dos parâmetros de qualidade de água e minimizar o manuseio da população. Deve-se evitar tratamentos químicos que possam vir a gerar alterações na qualidade da água e do solo.
Fases Lunares e Marés: No ambiente natural, as fases lunares como também as variações de marés, principalmente as de sizígia, são estímulos para o comportamento migratório dos camarões peneídeos. Neste períodos, os camarões tendem a alterar seus padrões de atividade locomotora. Em viveiros, os indivíduos passam a nadar agrupados próximo aos taludes no sentido anti-horário durante as fases de lua nova e lua cheia em períodos contínuos de até 10 dias, como reflexo do seu instinto migratório. Os animais podem apresentar-se mais ativos, reduzir o consumo alimentar por 4 a 5 dias e mudar, constituindo um conjunto de fatores estressantes que pode funcionar como um gatilho para enfermidades. Relatos não confirmados indicam que as mortalidades resultantes do IMNV são acentuadas durante este período. Nesta fase deve-se priorizar a alimentação próximo aos taludes do viveiro, simultaneamente reduzindo o arraçoamento em áreas centrais.
Densidade de Estocagem: Com o crescimento da atividade no país houve uma tendência de intensificação dos cultivos, em alguns casos de forma não planejada. A densidade reflete diretamente na biomassa estocada do viveiro, que por sua vez pode influenciar a qualidade do ambiente de cultivo. Ao mesmo tempo, o contato constante entre indivíduos favorece a proliferação de enfermidades, principalmente através da transmissão horizontal (e.g., canibalização de um indivíduo portador do vírus por um indivíduo sadio). Uma maior contagem total de bactérias no solo e uma queda na defesa imunológica dos camarões foram observadas em um sistema de cultivo super-intensivo (> 100 camarões/m2) quando comparado a um intensivo (60 camarões/m2). Face a estas condições, muitas fazendas tem procurado reduzir as densidades de estocagem visando minimizar a ação do IMNV, tendo-se observado alguns resultados positivos.
Produtividade Primária: A utilização de fertilizantes químicos em viveiros de cultivo visa incrementar a produção de fitoplâncton. Estes produtos têm como principais componentes o nitrogênio, o fósforo e o silicato. Contudo, eles são aplicados na maioria das vezes sem o conhecimento prévio da composição química do meio, utilizando-se de métodos padronizados de dosagem e aplicação. Devido a dinâmica do ambiente de cultivo, resultante de um aporte diferenciado de nutrientes na água de captação entre os períodos secos e chuvosos e das interações químicas entre solo e água, ocorre uma grande variação nas concentrações dos componentes químicos e na sua disponibilidade para comunidade fitoplanctônica. Como resultado, a predominância de um determinado componente pode favorecer o crescimento de um grupo de organismos que poderá ser prejudicial ao cultivo. Portanto, em algumas situações, o uso empírico de fertilizantes traz conseqüências indesejáveis, promovendo o crescimento de microorganismos nocivos (algas, dinoflagelados, cianobactérias). Coincidentemente, desde os primeiros relatos do IMNV tem sido observados uma correlação entre a floração de cianobactérias e a intensificação da mortalidade ocasionadas pelo vírus.
Oxigênio Dissolvido: Ao longo dos anos, com o processo de intensificação os níveis de oxigênio dissolvido (OD) relatados como sendo ideais para o cultivo do L. vannamei foram desafiados. Em muitas instâncias era comum encontrar fazendas operando com concentrações de OD inferiores a 3 mg/L, sem aparente efeito adverso na condição de saúde da população cultivada. Sob tais condições e frente à exposição a patógenos, há um aumento significativo do risco de infecções.
Matéria Orgânica: A matéria orgânica (MO) acumulada no fundo de viveiros de camarão é resultante da decomposição de resíduos de origem vegetal, animal e microbianos. Em viveiros existe uma contínua oferta de MO, derivada do animal cultivado, da biota presente no meio e de elementos exógenos, como ração e fertilizantes. Viveiros novos geralmente possuem pouca quantidade de MO, pois todo material adicionado ao sistema é rapidamente decomposto. Ao longo de um curto espaço de tempo, (4-5 despescas) a quantidade de MO no solo pode alcançar uma concentração onde a taxa de decomposição anual é igual a adição de MO (equilíbrio). Desequilíbrios no aporte ou na taxa de decomposição de matéria orgânica resultantes de fatores como a intensificação, podem favorecer uma diminuição do pH do solo. Solos ácidos levam às seguintes condições: (1) propiciam o surgimento de substâncias tóxicas a base de Fe, Al e Mn; (2) seqüestram o fósforo da água e do solo devido a fixação; (3) diminuem o processo de nitrificação, e; (4) causam um aumento no acúmulo de MO não degradada. Estas condições acentuam a proliferação do IMNV, devido às condições inadequadas em que a população cultivada é submetida. Muitas fazendas passaram a intensificar os processos de tratamento do solo (desinfecção, secagem, revolvimento e calagem) objetivando eliminar organismos patógenos, promover a penetração de oxigênio em camadas inferiores, acelerar a decomposição de MO e a oxidação de compostos reduzidos e neutralizar a acidez. Considera-se um nível inferior a 3,0% de carbono orgânico como sendo o ideal em viveiros de camarão (Tabela 3)
Estratégias de Manejo
Nenhum procedimento isolado de manejo tem se mostrado eficaz para atenuar os impactos ocasionados por doenças virais na carcinicultura. Algumas práticas, como a aplicação de óxido de cálcio durante a engorda, tem dado resultados conflitantes contra o IMNV. Todos os procedimentos operacionais da fazenda devem convergir objetivando eliminar o estresse ambiental, aumentar a capacidade do animal para resistir a doença, minimizar o número de contatos que podem resultar na proliferação do IMNV e eliminar fontes de agentes infecciosos. Cada fazenda deve formular medidas que visem promover uma melhor condição ambiental para o animal. Alguns pontos são listados abaixo.
Bombeamento de Água: Se a água de captação apresentar boa qualidade, deve-se aumentar a troca d’água objetivando reduzir a carga viral. Se possível, a água de abastecimento deve ser desinfetada e mantida sob repouso no canal de adução precedendo o abastecimento dos viveiros. Isto é particularmente importante após chuvas excessivas ou quando a água apresentar-se com uma alta concentração de sólidos em suspensão. A instalação de telas ou chicanas no canal de abastecimento pode favorecer a redução de sólidos em suspensão. Durante a captação, as marés de sizígia devem ser evitadas, pois carreiam uma maior quantidade de material em suspensão de origem terrígena, podendo ainda ser contaminadas com efluentes de fazendas vizinhas. As fazendas devem também procurar evitar o bombeamento de água de despesca ou de descarga de operações adjacentes, bem como a captação de água com floração de cianofíceas e (ou) dinoflagelados.
Área de Berçários: Se na fase de berçário é detectada sobrevivência abaixo do histórico da fazenda, implementar filtragem mecânica e desinfecção da água de abastecimento. A área de berçário deve ser isolada com cerca a fim de restringir o acesso de pessoas não autorizadas. Equipamentos, materiais e tanques de aclimatação e de cultivo devem ser rotineiramente desinfetados e não compartilhados.
Pós-Larvas (PLs): Conduzir testes de estresse e de qualidade de PLs. Observar a distribuição na água, atividade natatória, presença de lipídeos no hepatopâncreas, preenchimento do trato digestivo, coloração de musculatura, aparência da carapaça e sistema branquial. Exigir do laboratório fornecedor transporte em embalagens com isolamento térmico e uniformidade de tamanho das PLs. Intensificar a alimentação dos animais na fase de berçário. Fazer transferência para viveiros de engorda com aeração contínua, com controle de emperatura, sem exposição solar e com densidade de estocagem moderada.
Qualidade de Água: Realizar limpeza e calibração rotineira de equipamentos de qualidade de água. Conduzir análises quantitativas e qualitativas de fitoplâncton no ponto de captação, canal de abastecimento e viveiro. Analisar diariamente os dados de qualidade de água e utilizá-los para tomada de decisões relativas aos procedimentos de manejo e despesca. Além de salinidade, oxigênio dissolvido, pH, transparência da água e temperatura. Realizar quinzenalmente, análise de compostos nitrogenados (amônia e nitrito), dureza, alcalinidade, material em suspensão, DBO, fósforo e nitrogênio total em cada um dos viveiros. Em áreas susceptíveis a alta salinidade, utilizar poços de água doce e monitorar a liberação de água mãe de salinas (água de alta salinidade).
Condição Sanitária: Bandejas de alimentação devem ser lavadas pelo menos em uma das refeições e desinfetadas sempre que possível. Não compartilhar materiais ou equipamentos de uso comum entre viveiros. Micro tratores e aeradores mecânicos devem ser adequadamente sanitizados, e os sacos de transporte de PLs e de ração descartados. Camarões coletados mortos nas bandejas ou durante a despesca devem ser enterrados, incinerados ou transferidos para aterro sanitário. Evitar o empréstimo de materiais, equipamentos e insumos provenientes de outras fazendas. Não permitir a entrada de animais domésticos ou silvestres na área de cultivo. Em fazendas extremamente impactadas pelo IMNV e sem prévios sinais de recuperação, deve-se avaliar a possibilidade de despesca total dos viveiros, seguida de parada sanitária na operação de cultivo. Os viveiros, os canais de adução e de drenagem deverão permanecer expostos ao sol por um período contínuo de até três meses.
População Cultivada: Evitar manuseio desnecessário da população cultivada. Camarões após a biometria não devem retornar aos viveiros. Podem ser comercializados, adequadamente descartados ou destinados ao consumo interno da fazenda. A cada biometria, monitorar necroses, grau de severidade do IMNV, muda, consumo alimentar, coloração da carapaça, condição do hepatopâncreas e brânquias. As despescas parciais ou parceladas não devem ser realizadas caso a população encontrar-se severamente afetada pelo IMNV. É importante realizar a coleta imediata de camarões encontrados mortos nas bandejas de alimentação e próximo aos taludes, pois o canibalismo de animais contaminados, moribundos ou mortos, é uma das principiais formas de disseminação da doença (Graf et al., 2003).
Ração e Alimentação: Priorizar rações com alta densidade nutricional, mesmo sob baixas densidades de estocagem. Alimentos imunopotencializados devem ser adotados nas seguintes situações: (1) condições conhecidas que resultem em estresse e comprometimento do desempenho do animal (transferência, chuvas, biometria); (2) aumento na exposição ao IMNV ou outros patógenos; (3) estágios de desenvolvimento quando os animais estão particularmente susceptíveis a agentes infecciosos (berçário, muda), e; (4) em operações de cultivo com alta prevalência da enfermidade. O número de arraçoamentos deve ser intensificado, utilizando de três a quatro refeições durante o dia, e de duas a três refeições no período noturno. Programas restritivos de alimentação, a suspensão de alimentação aos domingos ou longos intervalos de distribuição de ração podem favorecer o canibalismo, inclusive de camarões contaminados com o IMNV. A ração deve ser bem armazenada, evitando-se a exposição ao sol, mesmo quando transferida para o viveiro.
Considerações Finais
A história da indústria de camarão cultivado nos mostra evidências claras que surtos de enfermidades virais são fatores cíclicos e que nenhum país, região geográfica ou fazenda estão isentos de agentes patogênicos. A atividade no Brasil terá que rapidamente passar por mudanças de atitude relacionadas ao manejo. Procedimentos padronizados, antes vistos como eficientes para qualquer situação, terão que ser particularizados no dia-dia. Concepções do negócio fundamentadas exclusivamente no financeiro, sem prévias ponderações da relação custo-beneficio estão destinadas ao fracasso. Na realidade, o conhecimento técnico e a capacidade de interpretar as informações disponíveis devem ser usados para nortear as tomadas de decisão diante do surgimento de enfermidades. Este são fatores cruciais para administrar a ocorrência do IMNV nos cultivos e manter a rentabilidade do negócio.
Agradecimentos
A elaboração de parte deste artigo foi possível com informações cedidas pela empresa Purina do Brasil. Os autores agradecem o relato dos colegas Antônio Santana Junior (Purina do Brasil), Daniel Cleiton Pinheiro da Costa (Faz. Camarões do Brasil), Diego Buenaventura (Fazenda Aquafort) e Donald Lightner (Universidade do Arizona), além das inúmeras observações e comentários de técnicos, proprietários e envolvidos com a atividade.
Referências
Alonso-Rodríguez, R., Páez-Osuna, F. 2003. Nutrients, phytoplankton and harmful algal blooms in shrimp ponds: a review with special reference to the situation in the Gulf of California. Aquaculture, 219: 317-336.
Andrade, T.P., Vieira, R.H.S.F. 2003. A comparative study on the environmental environmental condition and immunological status of Litopenaeus vannamei farmed under an intensive versus super-intensive commercial rearing system in the State of Ceará, Brazil, p. 37. In: Livro de Resumos do World Aquaculture 2003, Salvador, BA.
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