A Revista Panorama da AQÜICULTURA não possui uma sessão fixa de cartas de leitores. Eventualmente, porém, publicamos correspondências que julgamos ser de grande interesse, a exemplo da carta abaixo, enviada por e-mail à nossa redação pelo Professor Eurico Cabral de Oliveira, do Instituto de Biociências da USP.
São Paulo, 20 de Fevereiro de 2006.
A breve notícia veiculada no final do ano passado pela SEAP de que o Governo Federal irá investir cerca de 5 milhões de dólares (aproximadamente 13 milhões de reais) para cultivo de algas no Nordeste foi lida com um misto de surpresa e de esperança, mas também de apreensão por mim e por vários colegas com quem comentei o assunto.
Surpresa porque, de repente aparece uma quantidade de recursos cujo montante do investimento supera muitas vezes tudo o que já se investiu historicamente em algas no país desde que a ficologia começou a ser tratada por pesquisadores brasileiros na década de 1950. Pelo que conversei com colegas do exterior parece que investimento de tal magnitude no cultivo de algas não encontra paralelo em qualquer país do mundo. Bem, é possível que se diga que o investimento não visa apenas o cultivo de algas no nordeste, mas inclui também outros organismos marinhos como moluscos e esponjas (quais seriam estes organismos o projeto não esclarece).
Esperança porque um projeto milionário como este certamente colocaria o Brasil no mapa dos países produtores e processadores de algas marinhas. Apreensão porque os colegas que consultei, incluindo o presidente da Sociedade Brasileira de Ficologia, tradicional organização que congrega os especialistas em algas do Brasil, e a presidente da Rede de Biotecnologia de Algas Marinhas, criada recentemente por órgãos do governo federal nunca tinham ouvido falar do projeto.
Esta apreensão aumentou muito quando, por gentileza da Revista Panorama da Aqüicultura, recebi uma cópia do projeto e pude me inteirar de como ele será conduzido. Na leitura que fiz pude ver que se trata de um projeto abrangente, cheio de boas intenções e frases feitas visando resolver os problemas de populações carentes da costa do Nordeste, mas com objetivos difusos e mal delineados. Esta falta de foco dos objetivos é extremamente prejudicial, pois não permitirá que os resultados práticos do projeto sejam avaliados a posteriori.
Embora não seja este o foro para uma análise detalhada do projeto, uma leitura mais atenta mostra que ele contém inúmeras incongruências e indefinições que põem em risco seu sucesso, do que resultarão trágicas conseqüências para o desenvolvimento do país neste setor. É exatamente para abrir o debate e estimular a discussão dentro da comunidade interessada na utilização de algas e na maricultura que levanto aqui alguns pontos que me chamaram a atenção.
O “projetão”, como vem sendo chamado, é dado como uma continuação lógica de um projeto anterior. Mas, onde estão os resultados do projeto anterior onde se investiu 360 mil dólares na mesma região (cerca de 760 mil reais) e com os mesmos atores e o mesmo objetivo? O que o projeto anterior avançou em comparação com o que já se sabia?
A viabilidade técnica da propagação vegetativa de algas do gênero Gracilaria (algas que produzem ágar) no Nordeste vem sendo demonstrada repetidamente em vários locais e por vários pesquisadores desde a década de 1960 sem que disto tenha resultado qualquer benefício para as comunidades praieiras.
Acho elementar que um projeto que visa produzir matéria prima para a indústria tem que contar necessariamente com uma parceria ativa da indústria – não vi isto no projeto, e para mim esta é uma falha nuclear que por si só o inviabilizará.
As comunidades caiçaras serão estimuladas a produzir algas, mas não está claro o que farão com a produção?
Quem as comprará e a que preço – qual o custo da produção? Qual o lucro esperado? Dados elementares que faltam no “projetão”. Onde está o compromisso dos industriais do setor em comprar a biomassa produzida? Em pagar um preço justo pela matéria prima e pelo uso do território marinho que será utilizado no cultivo?
Onde está demonstrada a competência dos técnicos da FAO que elaboraram este projeto em viabilizar o cultivo comercial de algas em algum país da América Latina?
O projeto abunda em frases feitas de efeito social, diminuição da pobreza, mas ignora o que já foi feito, faz tábula rasa de experiências passadas e reinventa a roda.
Porque começar simultaneamente em três Estados? Porque não investir em um e depois do sucesso garantido, problemas solucionados, mercado disposto a pagar um preço compensador, estender a experiência para outros locais? Faz sentido investir simultaneamente no Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba? Quais as espécies de algas, moluscos e esponjas que serão cultivadas? Serão introduzidas espécies exóticas como se aventa no projeto?
Um outro ponto que chama muito a atenção é a forma como serão gastos os recursos: mais de 900 mil dólares em consultorias (cerca de 1,9 milhão de reais), outro tanto em viagens e mais de 1,9 milhões em “contracts” (aproximadamente 4 milhões de reais). Percebe-se que estes são os itens de despesa mais importantes do projeto e que uma parcela muito pequena dos recursos vai chegar ao campo, aos executores técnicos, aos plantadores de algas – um sistema comum a outros projetos da FAO, que abundam em consultorias, viagens e reuniões.
Porque esta falta de transparência na elaboração do convênio – em reunião realizada em Angra dos Reis (RJ) no ano passado e patrocinada pelo governo federal foi criada a REDE NACIONAL EM BIOTECNOLOGIA DE ALGAS MARINHAS, com representantes da SEAP, CNPq, cientistas e industriais, onde se traçou uma estratégia nacional para desenvolver o setor, e onde o convênio em pauta se encaixa perfeitamente – ele não foi sequer mencionado e perdeu-se preciosa oportunidade para partilhar fato tão auspicioso com o público alvo. Pois bem, para levar adiante a referida Rede, o que se conseguiu do governo foi um edital no valor de 140 mil reais para todo o país.
Esperamos que os representantes da SEAP possam explicar estas e outras questões sobre o convênio com a FAO no Congresso Nacional de Ficologia que terá lugar em Itajaí, em março próximo, para dar um mínimo de transparência a este vultuoso projeto, que lamento vaticinar, parece que vai ser mais um tiro na água em nosso esforço de levar o Brasil a explorar de maneira sustentada o potencial de seus recursos e território marinho. O problema é que o fracasso de um projeto desta magnitude econômica cumprirá a triste função de mostrar que não é recurso que falta para desenvolver o setor, mas falta de mercado ou de competência nacional. Após seu fracasso, e justificadamente, será muito difícil conseguir investimentos para o setor.
Eurico Cabral de Oliveira
Professor do Instituto de Biociências da USP