Por: Fernando Kubitza,
Ph.D. ACQUA & IMAGEM – Jundiaí, SP, Brasil
e-mail: [email protected]
As opiniões aqui apresentadas são de inteira responsabilidade deste autor, que espera que estas sejam recebidas sem radicalismo de ambas as partes, visto o intuito que tive em discutir alguns pontos que merecem ser melhor avaliados e algumas limitações que devem ser superadas. As opiniões e dúvidas aqui expressas estão abertas às críticas e argumentações que outros técnicos, produtores e demais leitores possam fazer sempre no intuito de contribuir para superar os obstáculos encontrados pelo modelo de piscicultura por hora em discussão.
Comentários sobre alguns dos argumentos em suporte ao modelo de piscicultura consorciada com suínos:
Reduz a necessidade de capital operacional na aquisição de adubos e ração, uma vez que a base da alimentação dos peixes é o alimento natural produzido graças à fertilização da água dos viveiros promovida pela aplicação dos dejetos. Isto permitiria que um grande contingente de pequenos produtores ingressasse na piscicultura, com menor investimento e menor risco de grandes perdas de capital.
Possibilita a reciclagem de um resíduo orgânico poluente, que se assim não o fosse, seria aplicado diretamente sobre os solos ou clandestinamente despejados em córregos e rios, contaminando assim mananciais hídricos com sério prejuízo à qualidade ambiental e à saúde pública. No entanto, a piscicultura utilizando dejetos de suínos não pode ser considerada a solução para a reciclagem de todos os resíduos em grandes granjas de suínos ou de todos os resíduos gerados pela suinocultura nacional. Nem há esta pretensão, é claro. Para isto seriam necessárias extensas áreas de viveiros, geralmente impossível de se implantar dentro ou nas proximidades das granjas de suínos, por limitações de topografia, disponibilidade de água e capital para tanto.
Reduzido custo de produção por quilo de peixe. Produtores de Santa Catarina no início do ano passado estavam produzindo tilápias de 350g a um custo de R$ 0,60/kg neste modelo de cultivo. Próximo ao final do cultivo a aplicação de dejetos era interrompida e se iniciava o uso de uma ração complementar peletizada de baixo custo. Segundo os produtores, a conversão alimentar girava entre 0,6 a 0,8.
Custos de produção. Aqui cabe alguns questionamentos e reflexões. Com base nos índices de produtividade e custos apresentados no quadro 1, estimei o custo de produção de tilápias de 350g cultivada sob o modelo de consorciação com suínos e alimentadas somente no final do cultivo com ração.
Os custos referentes à coleta, transporte e aplicação dos dejetos foram considerados zero (o que nem sempre é o que ocorre). Para falar a verdade, a piscicultura presta um favor à suinocultura e seria até justo que obtivesse uma receita (vinda da suinocultura) por tonelada de dejetos removida e que não precisaria ser descartada ou entrar em sistemas de tratamento. Mas deixemos isso de lado para não complicar demais o assunto. No quadro 2 segue uma apresentação simplificada dos custos. Operacionalmente o quilo da tilápia custou R$ 0,71, de acordo com as premissas apresentadas no quadro 1. Nestes custos entram a remuneração ao trabalho de gerenciamento, geralmente a cargo do proprietário.Pergunte a ele qual o pró-labore que gostaria de receber da piscicultura como complementação de sua renda mensal. Não creio que muitos estariam satisfeitos com menos de R$ 300,00 por mês. Ando fazendo esta pergunta a inúmeros piscicultores, com área de produção geralmente inferior a 2 hectares e é raro um que estaria satisfeito com um pró-labore abaixo de R$ 600/mês, mesmo com a sua piscicultura muitas vezes não sendo capaz de proporcionar isto. Também foi incluída a remuneração da mão de obra permanente, muitas vezes representada por um membro da família. Estes custos geralmente são omitidos quando a mão de obra é familiar.
Incluindo apenas a depreciação anual dos viveiros e somente os juros sobre o investimento na construção dos viveiros, o custo de produção saltaria para R$ 0,86/kg. Estes valores seriam ainda maiores se incluída a depreciação de outros equipamentos (redes, caixas de transporte de peixes, tratores, carretas, roçadeiras, etc.) e os custos de manutenção de instalações, veículos e equipamentos. Ainda seria interessante adicionar mais uns 10% de custos imprevistos e teríamos R$ 0,93/kg. Impostos sobre produtos comercializados nem foram incluídos, visto o caráter totalmente informal deste modelo de piscicultura. Aliás, de quase todos os modelos praticados no Brasil.
O interessante é que, mesmo eliminando a despesa com ração (sem a qual também seria difícil alcançar a produtividade de 6 ton/ha), os custos ainda ficariam ao redor de R$ 0,70/kg. Isto sem considerar imprevistos, como mortalidades de peixes por problemas de doenças, qualidade de água e frio. Portanto, colocando tudo no papel, fica difícil acreditar em custos abaixo de R$ 0,80/kg de peixe produzido. A não ser que a produtividade média anual ultrapasse os 6.000kg/ha utilizados nos meus cálculos ou se houve algum exagero de minha parte na remuneração da mão de obra, no custo de construção e no cálculo da depreciação dos viveiros. Gostaria de conhecer a matemática destes cálculos, pois talvez eu esteja equivocado e sendo injusto quanto a estes comentários. Seria interessante uma revisão nestes custos de produção pois alguns ítens importantes podem ter sido subestimados.
Rentabilidade. Vale ainda ressaltar que custo reduzido ou maior lucro por quilo nem sempre é sinônimo de maior rentabilidade. Esta é determinada pela combinação entre produtividade por área (ciclos de produção x biomassa por ciclo) e margem de lucro por quilo de peixe vendido (valor de venda menos custo de produção). Portanto, com uma produtividade média anual de 6.000kg/ha, custo de produção de R$ 0,60/kg e valor de venda de R$ 0,90/kg, a rentabilidade anual seria ao redor de R$ 1.800,00/ha no modelo de piscicultura consorciada com suínos. Em sistemas intensivos bem gerenciados e com o uso de ração, os custos de produção de tilápias de 500g em viveiros com ração de boa qualidade variam entre R$ 1,40 a 1,70/kg. A produtividade facilmente supera os 16.000 kg/ha/ano devido à obtenção de duas ou mais safras anuais. A um preço de venda de R$ 1,80 para este peixe, a rentabilidade anual estaria entre R$ 1.600 a 4.800/ha/ano. Em alguns casos o peixe é vendido a R$ 2,00 a 2,40/kg, superando estes valores.
Obviamente, se aplicarmos estes valores de venda aos peixes oriundos dos sistemas consorciados, a rentabilidade seria outra. No entanto seria necessário um peixe de 500g (que demandaria mais tempo e reduziria a produtividade anual) e uma maior proximidade aos mercados que pagam preços de R$ 1,80 para que isto aconteça. Por outro lado, se uma indústria de processamento tiver que operar comprando matéria prima a R$ 1,10 a 1,20/kg, definitivamente não seria a tilápia produzida em sistemas intensivos com ração. Não na atual escala de produção das pisciculturas no Brasil. Assim, só resta a alternativa do peixe produzido em sistemas menos intensivos. Ainda assim levanto a questão: Qual foi o motivo do frigorífico que processava tilápia na região do Alto Vale ter decidido ao final do ano passado não mais processar tilápia? Foram os problemas de logística para conseguir volume adequado de peixe para processamento? Foi o desestímulo causado pela grande mortandade de peixes sob o rigoroso inverno de 2000? Foi pelo fato dos produtores estarem encontrando preços mais atrativos em outros canais de mercado do que os R$ 0,90/kg pago pelo frigorífico? Ou o quê? Gostaria que na próxima edição da Panorama alguém pudesse clarear esta questão. Que tal ouvir isto diretamente dos próprios gerentes do frigorífico? Seria muito importante para todos os produtores e empresários que estão apostando na industrialização da tilápia saber o que de fato ocorreu. Como um frigorífico que adqüiria matéria prima a R$ 0,90/kg se desencantou com a industrialização deste peixe?
· Receita adicional ao produtor de suínos. Neste ponto é interessante notar que geralmente o suinocultor é quem vira piscicultor e não o inverso. Isto reflete o fato da piscicultura apresentar melhores perspectivas de rentabilidade comparada a suinocultura. Assim, lanço aqui a seguinte questão: se a suinocultura apresenta retorno financeiro apertado, como a maioria dos produtores de suínos categoricamente afirma, porque não direcionar investimentos e capital operacional empreender uma piscicultura mais intensiva?
Comentários sobre alguns dos argu mentos contrários ao modelo de pisci cultura consorciada com suínos:
Abre muitos precedentes para questionar a segurança que os produtos oferecem ao consumidor e pode levar a uma generalização quanto à qualidade do peixe oriundo de piscicultura.
O consumidor tem sido constantemente bombardeado por campanhas de marketing e conceitos que reforçam a imagem de alimentos naturais, saudáveis, puros e com garantia de origem. Enquanto possam atender o caráter natural, e até mesmo orgânico, peixes produzidos em viveiros adubados com dejetos de suínos certamente teriam comprometida a percepção de serem “saudáveis” ou “puros”. Além do mais, qual empresa teria a coragem, e até mesmo a sinceridade, de especificar como estes peixes foram produzidos nas embalagens ou panfletos promocionais, de forma a obter selos de garantia de origem? Numa tendência de mercado onde as empresas se comprometem a fornecer ao consumidor informações relevantes sobre a origem do produto que ele está adquirindo, omitir o fato de como este peixe foi produzido seria prática inaceitável pelo código de defesa do consumidor ou, no mínimo, uma grande enganação.
Omitir o fato ao consumidor pode colocar toda a piscicultura em posição bastante delicada frente às outras indústrias de carne, que poderiam generalizar e explorar negativamente a imagem do peixe cultivado sendo produzido à base de dejetos de suínos, que com certeza por elas seriam denominados de “coco, estrume ou merda de porco” e não polidamente como dejetos de suínos. Profissionais da área de saúde pública podem facilmente levantar questionamento quanto ao risco de zoonoses relacionado a este sistema de cultivo. Mesmo com bons argumentos de pesquisa nas mãos muitas vezes é difícil convencer alguns técnicos que estão no comando da inspeção sanitária. Principalmente se houver pressão de outras cadeias produtivas (frango, bovinos e da própria indústria pesqueira). Este esforço deve ter início em âmbito regional, e ser respaldado por instituições sérias de pesquisa e fomento, como parece estar ocorrendo em Santa Catarina.
Uma saída seria utilizar outras terminologias. Por exemplo, falar em fertilização de viveiros com adubos orgânicos ao invés de dejetos de suínos. Creio que isto amenizaria o impacto sobre a percepção do consumidor. Afinal, verduras e legumes também recebem adubação com estercos animais. Também seria oportuno aproveitar a valorização dos produtos orgânicos e imprimir um marketing positivo ao peixe produzido em viveiros adubados. Desde que os fertilizantes orgânicos sejam provenientes de suinoculturas onde não se utilizam probióticos, vermífugos, entre outros aditivos e medicamentos. Algo um pouco raro em regiões onde a suinocultura é praticada intensivamente. Porém, alternativas para isto podem ser encontradas.
· O componente cultural sobre a decisão de compra do produto pode restringir o mesmo a mercados locais, limitando consideravelmente o potencial de expansão deste modelo de cultivo.
Embora existam bases científicas que comprovem a qualidade do produto e a segurança do mesmo para consumo, será preciso empreender uma considerável campanha para convencer a maioria dos consumidores a adquirir um pescado que foi produzido em viveiros adubados com dejetos de suínos. Em mercados regionais onde estes produtos têm sido comercializados, a não rejeição pelo consumidor quanto ao aspecto sensorial (visual e gustativo) pode vir à lona quando a percepção cultural for atingida. Gostaria de saber se o consumidor que está adquirindo este produto em mercados regionais realmente sabe a origem do mesmo. É a velha história do camarada que comeu gato por lebre ou cobra por peixe. Pode até gostar, mas quando descobre a reação pode não ser das mais positivas. Se sente enganado e este é o pior sentimento que um consumidor pode ter. Eu mesmo sem saber devo ter comido quantas tilápias e carpas produzidas com resíduos de suínos? Já comi algumas vezes sabendo e confesso que se não fosse em pisciculturas que realmente dispunham de bom controle do sistema de produção, sem exageros na aplicação de esterco, teria receio em consumir. De fato é uma questão cultural. Na China, insetos, cobras, escorpiões e outros organismos inusitados são normalmente consumidos como alimento ou iguarias. O costume por aqui e em outros países já não é bem assim. Embora do jeito que as coisas andem eu não duvido de mais nada.
A questão cultural, portanto, poderá limitar consideravelmente o mercado para produtos oriundos deste modelo de piscicultura e, portanto, a sua expansão. Assim, seria fundamental encontrar mercados alternativos ou implementar uma campanha de conscientização do consumidor quanto aos benefícios ambientais do modelo produtivo e a segurança e qualidade do produto. Praticar no varejo um preço de venda bastante atrativo para os peixes oriundos deste modelo de cultivo pode ser uma estratégia eficaz de expandir o mercado. Embora o sistema proposto aparentemente tenha condições de obter pescado a um baixo custo, há pouco mais de um ano comprei em um supermercado de São Paulo uma embalagem com 500g de filé de tilápia congelado oriundo do mesmo frigorífico de Santa Catarina ao qual já fiz referência neste texto. Na época não conhecia a origem do produto. Depois vim a conhecer os detalhes: tilápia consorciada com suínos e comercializada ao redor de 350g ao preço de R$ 0,90/kg pago ao produtor. Após transformado em filé, embalado e colocado no freezer do supermercado, o quilo do produto (filé) era vendido a R$ 12,00. Quanto ao sabor nenhuma restrição. Porém, no descongelamento do filé se perdia um bocado de água. Sem o corte em “V” o filé ainda reservava alguns espinhos. Estes preços não parecem tão atrativos para fazer a classe média e alta superar seus paradigmas. Pouco eficaz, diria, se observada a enorme gama de carnes concorrentes que estão à disposição destas classes. O que dizer então da grande massa menos favorecida, que acaba sempre ficando no frango, ovo e uma carne de segunda. Peixe para a classe pobre?? Vai continuar sendo produto vindo de pescarias ou para consumo restrito à semana santa (enquanto restarem católicos convictos neste país). E vai acreditar que os pobres não têm restrições quanto a consumir um produto que foi produzido com dejetos de suínos. Podem comprar e até achar uma delícia. Mas seria pouco provável comprarem se conhecerem a origem, a não ser que o preço fosse muito convidativo. Hoje pela manhã conversei ao telefone com 17 pessoas aqui em Jundiaí e acabei descobrindo o seguinte: apenas 3 deles comiam peixes 1 vez por semana; 11 comem esporadicamente; 2 disseram que é raro e 1 disse que não come. Então expliquei a cada um o modelo de piscicultura consorciado com suínos e falei da garantia de segurança do produto. Finalmente perguntei se teriam algum problema em comprar este peixe, sabendo sua origem. Apenas 1 entre os 17 entrevistados disse que não teria problema com isso (diga-se de passagem, foi um dos dois que disseram comer peixe raramente). Eu mesmo fiquei espantado com a falta de hábito do povo daqui de comer pescado. Não entrei em detalhes sobre os motivos para esta falta de hábito, mas fiquei interessado em expandir esta pesquisa para outros pontos. Também me agradou muito bater um papo com gente comum que pouca idéia tem sobre a piscicultura. Pensei a princípio que poucos iriam querer perder tempo respondendo às minhas perguntas. Sempre achei que existisse muita rejeição ao pessoal que faz pesquisa de opinião via telefone. Talvez haja, quando eles têm a intenção de vender algum produto ou serviço. Portanto, valeria uma pesquisa como esta em outras cidades, inclusive aquelas onde se consome mais peixe (cidades litorâneas).
Bom, voltemos à discussão. Seria interessante, então, identificar mercados em potenciais para este pescado oriundo do cultivo em viveiros adubados com dejetos de suínos. Se o custo de produção permitir, pode ser uma boa opção tentar abrir canais de exportação para países como a China, onde há mais de 2.000 anos já se pratica a piscicultura reciclando toda a sorte de resíduos orgânicos, entre eles os estercos animais e até mesmo humano. Neste país o consumo de carpas também é impressionante (é o grupo de peixes mais cultivado). Parcerias com os governos estaduais para a inserção deste pescado na merenda escolar, também podem devem ser avaliadas. Não encaro colocar este produto na refeição das crianças um contra senso. Afinal, este pescado possui qualidade sensorial e segurança microbiológica asseguradas por renomadas instituições de pesquisa e fomento em Santa Catarina. Além disso, a merenda é oferecida gratuitamente pelo estado e, para muitas crianças, é a única refeição decente que vão ter no dia. A inclusão aumentaria o valor nutricional da merenda escolar oferecida nas escolas da rede pública, criaria o hábito de consumo nas futuras gerações e, poderia ser uma boa oportunidade para iniciar um trabalho de conscientização da população. E este mercado não é pequeno. Além de criar boas perspectivas para a expansão do modelo de piscicultura integrado com suínos, os governos estaduais estariam dando sua contribuição ao desenvolvimento de um modelo produtivo que reduz o impacto ambiental e auxilia a viabilizar a indústria da suinocultura, importante atividade geradora de renda e empregos em Santa Catarina e outros estados.
Sem mais para o momento, gostaria que estes comentários instigassem o início de uma discussão positiva e criativa para identificar meios de superar os possíveis obstáculos que este sistema de cultivo poderá encontrar pela frente. Também gostaria mais uma vez de ressaltar que este tipo de piscicultura é algo peculiar de uma região onde a suinocultura é uma atividade já estabelecida e importante. Em alguns estados do nordeste houve iniciativas de implantação deste modelo piscicultura. Todas as quais tive conhecimento não foram bem sucedidas, quer pela falta de utilização de estratégias de manejo adequadas, quer pelos problemas encontrados no processamento e comercialização de suínos. Creio que há espaço para muitos modelos de cultivo, visto a tremenda diversidade de espécies, clima, condições regionais e mercados que temos em nosso país. No entanto, que todas sejam conduzidas de maneira responsável ao meio ambiente, ao consumidor e à imagem da indústria do pescado cultivado no país e no exterior.