Cultivo de Moluscos:

Uma atividade que produz inúmeros impactos ambientais positivos

Por: Felipe Matarazzo Suplicy, Ph. D.
Coordenador Geral de Maricultura da SEAP
e-mail: [email protected]


O cultivo de moluscos filtradores, tais como ostras, mexilhões, vieiras, sururus e sarnambis é também conhecido no Brasil como malacocultura, uma atividade ecologicamente correta, que produz alimentos saudáveis, seguros e nutritivos. Praticada com sucesso em todos os continentes, a malacocultura pode utilizar o ambiente marinho de forma sustentável, já que além da produção de alimentos, esse cultivo melhora a qualidade da água e auxilia na redução da concentração de nutrientes. Nas fazendas marinhas, a malacocultura promove ainda a recuperação de estoques de peixes que se alimentam das incrustações, ou procuram abrigo dentro das cordas de mexilhões e nas lanternas de ostras. O artigo a seguir, traz importantes esclarecimentos sobre a interação ecofisiológica entre a malacocultura e o ambiente marinho. 

De acordo com o formulário contido no Anexo II da Instrução Normativa Interministerial no 6 de 31 de maio de 2004, que detalha os procedimentos necessários para a solicitação de autorização de uso de uma área em águas da União para fins de maricultura, é preciso informar a “quantidade aproximada de resíduos sólidos a serem gerados por tonelada de organismos cultivados (fezes, restos de alimentos e outros que se fizerem necessários)”. Entretanto, é preocupante o fato de que poucas pessoas no Brasil realmente sabem qual a quantidade de resíduos sólidos que é gerada por tonelada de moluscos produzidos, de forma que tanto os maricultores interessados na regularização de suas áreas, quanto os analistas ambientais que estarão analisando a solicitação de licenciamento ambiental, terão dificuldades, respectivamente, na prestação desta informação e na análise dos impactos deste material orgânico no ambiente receptor.

Os resíduos sólidos gerados pelo cultivo de moluscos filtradores são compostos por fezes e pseudofezes do animal. As pseudofezes nada mais são do que a porção de alimento filtrado que é rejeitada junto com um muco, antes de ser ingerida após uma seleção do sistema filtrador do animal em busca por partículas de maior teor orgânico. Juntos, fezes e pseudofezes são também chamados de biodepósitos.

Diferentemente de outras formas de aqüicultura que utilizam rações, nenhum alimento consumido por moluscos bivalves é adicionado ao ambiente, uma vez que se alimentam exclusivamente de partículas que ocorrem naturalmente na coluna da água. Ao mesmo tempo em que grande parte do alimento e dos nutrientes consumidos pelos moluscos retorna ao ambiente como biodepósitos num processo conhecido como biodeposição, uma porção significante destes é incorporada aos tecidos do animal, permitindo seu crescimento e reprodução. O que não é assimilado é biodepositado no sedimento e passa a servir de alimento para animais detritívoros, incluindo muitos dos vermes e crustáceos, que por sua vez servem de alimento para peixes e aves.

O volume de resíduos sólidos

Há no Brasil um pequeno grupo de pesquisadores que tem se dedicado, nos últimos anos, a investigar a ecofisiologia da espécie de mexilhão nativo (Perna perna), por meio de experimentos que coletam separada e individualmente, as fezes e as pseudofezes de mexilhões de cultivo, enquanto estes se alimentam no ambiente natural. Os resultados destes experimentos mostraram que a produção dos biodepósitos é extremamente variável e dependente tanto dos níveis de turbidez, como da quantidade de matéria orgânica presente na coluna d’água. Em locais com elevada turbidez (matéria particulada em suspensão superior a 20 mg/litro), cerca de 70 a 90% do alimento filtrado pelos moluscos pode ser rejeitado para o ambiente na forma de pseudofezes. Estes estudos mostraram ainda que os mexilhões filtram entre 5 a 10 litros/hora, capturam até 160 mg/hora de matéria em suspensão e rejeitam até 124 mg/hora na forma de biodepósitos.

Considerando que cada tonelada de mexilhões contém cerca de 22 mil indivíduos e que o tempo para se atingir o tamanho comercial é de oito meses, é possível calcular o volume de água bombeada, a quantidade de material em suspensão filtrado e a quantidade de biodepósitos gerada por tonelada de moluscos produzida (Tabela).

Ao saber que para produzir uma tonelada de mexilhões são geradas de 0,2 a 15,3 toneladas de biodepósitos, uma pessoa leiga tem a impressão que a malacocultura é altamente impactante e poluidora. Entretanto, é preciso uma análise mais aprofundada sobre a interação destes animais com o ambiente marinho para que se tenha uma melhor percepção dos impactos desta atividade.

O impacto dos resíduos sólidos

A malacocultura é por definição uma atividade ecologicamente correta. Produtores de moluscos são comprometidos com a preservação da qualidade da água, com a qualidade do produto e a qualidade do ambiente, desde a desova dos moluscos até o dia em que são colhidos como produto final para consumo. O cultivo de moluscos em áreas certificadas como livres de contaminação, produz alimentos saudáveis, seguros e nutritivos. Além disso, o cultivo de animais filtradores melhora a qualidade da água pela remoção de matéria particulada em suspensão na coluna d’água, além de auxiliar a redução da concentração de nutrientes para níveis desejáveis.

Esses animais filtradores são extremamente eficientes na remoção da matéria particulada em suspensão, reduzindo a turbidez da água e removendo direta e indiretamente a quantidade de nitrogênio e de outros nutrientes presentes. Por intermédio deste processo, esses purificadores de água reduzem as quantidades de matéria orgânica, nutrientes, silte, bactérias e vírus, aumentando a transparência da água e a penetração da luz solar, que por sua vez estimula a atividade fotossintética de micro e macroalgas, além de outras formas de vegetação subaquática.

Por serem consumidores primários que se alimentam na base da cadeia alimentar, os moluscos filtradores exercem um papel essencial no ambiente. Aceleram tanto o processo natural de sedimentação do plâncton quanto a decomposição de células planctônicas mortas, a remineralização e a disponibilização dos nutrientes do sedimento para a produtividade primária fotossintética.

Ciclo de nutrientes e de formação de biodepósitos
Ciclo de nutrientes e de formação de biodepósitos

 

A aceleração da sedimentação de matéria orgânica resulta num aumento da ação de bactérias denitrificadoras, que podem auxiliar na remoção de nitrogênio de estuários sobrecarregados pela descarga de nutrientes orgânicos e inorgânicos. A adesão de muco protéico às células fitoplanctônicas durante o processo de filtração e geração de biodepósitos, auxilia a ação das bactérias no sedimento e acelera a liberação de formas nitrogenadas para a coluna d’água. Estes compostos na forma de amônia, nitrito e nitrato, são rapidamente assimilados pelo fitoplâncton que é novamente capturado pela ação filtradora dos moluscos.

Os moluscos filtradores atuam como um importante elo, proporcionando um curto circuito que acelera a interação entre as comunidades de animais bentônicos e a produção primária fitoplanctônica na coluna da água. A ação filtradora dos moluscos pode auxiliar no controle e prevenção do florescimento de algas tóxicas, com a remoção dessas células antes que atinjam níveis prejudiciais ao ambiente. Agindo assim, os moluscos filtradores exercem um importante papel controlando a quantidade de matéria orgânica em suspensão e influenciando fortemente a ciclagem de nutrientes no ambiente.

Associação de aves - gaivotas e biguás - com o cultivo na Enseada da Armação do Itapocoroy, Penha-SC
Associação de aves – gaivotas e biguás – com o cultivo na Enseada da Armação do Itapocoroy, Penha-SC

Os moluscos filtradores não só removem o nitrogênio do ambiente como também incorporam uma grande proporção em seus tecidos que são compostos por aproximadamente 1,4% de nitrogênio e 0,14% de fosfato. Apesar destas porcentagens não representarem volumes expressivos quando consideradas isoladamente em um único animal, grandes quantidades destes nutrientes são removidas permanentemente do ambiente quando toneladas de mexilhões são colhidas. De acordo com um artigo redigido por oito renomados pesquisadores da matéria e publicado na revista World Aquaculture Society em 2003, uma colheita de cerca de 200 ostras por semana pode retirar do ambiente no mesmo período, o nitrogênio aportado pela descarga de esgoto doméstico de uma residência com fossa séptica.Da mesma forma, uma colheita semanal de 10 mil ostras contém cerca de 13,6 kg de nitrogênio e 1,4 kg de fosfato, e uma fazenda de ostras ocupando uma área de um hectare pode retirar do ambiente a descarga de nitrogênio gerada por uma comunidade com 40 a 50 habitantes.

As fazendas de moluscos promovem também a recuperação de estoques de peixes, sendo comum encontrar pampos, tainhas e robalos nadando à sombra dos cultivos e se alimentado das incrustações nas instalações, como também é comum encontrar juvenis de badejos e garoupas procurando abrigo dentro das cordas de mexilhões e lanternas de ostras. Além disso, as fazendas proporcionam substrato e abrigo para uma variada biomassa de invertebrados.

Maricultores realizam suas atividades rotineiras nas balsas de manejo da Enseada da Armação do Itapocoroy, Penha-SC - colheita, seleção do mexilhão de tamanho comercial e confecção das cordas de cultivo
Maricultores realizam suas atividades rotineiras nas balsas de manejo da Enseada da Armação do Itapocoroy, Penha-SC – colheita, seleção do mexilhão de tamanho comercial e confecção das cordas de cultivo

Garantindo níveis sustentáveis de cultivo

Assim como em qualquer forma de aqüicultura, densidades elevadas de cultivo de moluscos podem resultar em ecossistemas desbalanceados, como já demonstrado em áreas intensamente exploradas para o cultivo de mexilhões em balsas na Espanha. Naturalmente, os produtores de moluscos são os maiores interessados na manutenção de densidades de cultivo adequadas, uma vez que densidades elevadas levam à reduções na taxa de crescimento e, conseqüentemente, elevam o tempo de cultivo. De maneira geral o espaçamento mínimo de 30 metros entre módulos de cultivo, 5 metros entre espinhéis e de pelo menos 0,5 metro entre cordas e lanternas, é suficiente para promover a boa circulação de alimento e impedir o excesso de biodeposição no sedimento.

Dependentes de uma água marinha livre de poluição para produzir moluscos de qualidade, os maricultores passam também a exercer o papel de verdadeiras sentinelas na preservação do meio ambiente marinho e estão sempre atentos à liberação irregular de esgotos domésticos e outras formas de poluição nas proximidades de suas áreas de cultivo. Em muitos países, como nos EUA, Nova Zelândia, Chile, Irlanda e Canadá, as organizações de maricultores estão elaborando seus Códigos de Conduta Responsável, contendo Boas Práticas de Manejo (BPM), de forma a garantir que o setor se desenvolva com responsabilidade ambiental. Além da preservação das condições naturais essenciais ao desenvolvimento da atividade, esta iniciativa visa também, a conquista de um crescente mercado internacional que cada vez mais procura consumir alimentos produzidos com responsabilidade ambiental.

Em suma, a malacocultura é recomendada internacionalmente, inclusive pela Organização das Nações Unidas – ONU, como uma forma de aqüicultura ambientalmente sustentável. O fomento e a promoção do cultivo sustentável de moluscos promove também, a preservação e a manutenção dos recursos naturais marinhos. Esta atividade não só provê uma colheita sustentável de alta qualidade e valor do ambiente marinho, como também auxilia na fixação de comunidades tradicionais costeiras em seus locais de origem, gerando empregos e desenvolvimento social local, ao mesmo tempo em que proporciona benefícios tangíveis ao ambiente marinho.

Por fim, a utilização da expressão “geração de resíduos sólidos por tonelada produzida” é equivocada nesta modalidade de maricultura, uma vez que o que ocorre na verdade é um “processamento e reciclagem” de matéria orgânica num volume até 15 vezes superior ao volume de moluscos colhidos ao final da safra.