Entrevista: Henrique Figueiredo

A Lei 11.959 que criou o Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), entre outras novidades, trouxe para o novo ministério a responsabilidade pela sanidade pesqueira e aquícola, uma importante tarefa que antes fazia parte das atribuições do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Para regulamentar as atribuições que são privativas do MPA, bem como algumas formas de operacionalização foi assinado em 7/12/2009 o Decreto no 7.024 e, mais recentemente, esses dois ministérios assinaram um Acordo de Cooperação Técnica, cujo objetivo é o de harmonizar os procedimentos relativos à sanidade pesqueira e aquícola. Para falar sobre a atuação do MPA na área de sanidade entrevistamos o médico veterinário Henrique César Pereira Figueiredo, que os leitores da Panorama da AQÜICULTURA já conhecem através dos seus artigos na Coluna Sanidade Aquícola. Henrique Figueiredo ocupa desde fevereiro de 2010 o cargo de Coordenador-Geral de Sanidade Pesqueira e Aquícola, da Secretaria de Monitoramento e Controle da Pesca e Aquicultura do MPA.


Panorama da AQÜICULTURA: Em linhas gerais, no que se refere à sanidade de organismos aquáticos, quais as novas atribuições do Ministério de Pesca e Aquicultura, e quais as atribuições que se mantiveram no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)?

Henrique Figueiredo: Vamos começar pelos aspectos amplos das competências de cada Ministério. Continua com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) a inspeção de produtos de origem animal: abatedouros, matadouros e o SIF – Sistema de Inspeção Federal. Também é da responsabilidade do MAPA todos os registros dos insumos para uso em aquicultura, como medicamentos, produtos biológicos e componentes de ração. Já o Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), desde a sua criação, é o responsável pela Defesa Sanitária dos Animais Aquáticos, e isso engloba todos os controles de enfermidades no território nacional, bem como a possibilidade de introdução de novas enfermidades. A partir de agora, quando o estado sanitário de algum dos nossos recursos aquáticos for questionado por outros países, a resposta oficial caberá ao MPA. No âmbito da defesa, o MPA é hoje a Autoridade Sanitária para Trânsito Nacional e Internacional de Animais Aquáticos. Da mesma forma, cabe ao MPA a responsabilidade de autorização da exportação e importação de animais aquáticos vivos, seja adulto, alevino, sêmen, ovos ou qualquer outra forma viva.

Panorama da AQÜICULTURA: Me parece um grande desafio para um ministério recém criado…

Henrique Figueiredo: Sim, é um grande desafio para o MPA. Agora, por exemplo, estamos fazendo Análises de Risco de Importação para vários processos, como importação de ovos férteis de peixes, sêmen de ostras tetraplóides, pescado oriundo de aquicultura, dentre outros. Este é um dos procedimentos que passou a ser privativo do MPA. E é aí que entra a parceria que foi construída no Acordo de Cooperação Técnica assinado pelos dois ministérios. O MPA ainda está estabelecendo as suas estruturas físicas e de recursos humanos e precisamos do apoio do MAPA para dar continuidade aos serviços de movimentação geral no país, nacional e internacional. E isso já está sendo feito sob a regulação técnica e legal do MPA.

Panorama da AQÜICULTURA: Isso significa que o MPA está aproveitando a estrutura já existente no MAPA?

Henrique Figueiredo: Sim, inclusive os Fiscais Federais Agropecuários, pelo menos até que o MPA construa recursos humanos com habilitação em fiscalização. O controle do trânsito é a base quando se deseja controlar as doenças em um país. A maior parte das doenças passa de uma região para outra por meio de trânsito de animais vivos e os seus produtos. Dentro do trânsito nacional esse controle é feito pela emissão das GTAs – Guias de Trânsito Animal, e no âmbito internacional se dá por aprovações prévias das demandas de importação ou exportação, lembrando que em pedidos de importação nós podemos determinar exigências ao país exportador. Nos pedidos de exportação, cabe ao Brasil atender às exigências do país importador.

Panorama da AQÜICULTURA: Existem mudanças nas emissões das Guias de Trânsito Animal (GTAs)?

Henrique Figueiredo: No caso do trânsito nacional, o MPA está construindo um sistema próprio para emissão das GTAs. Vai ser um sistema eletrônico onde todas as GTAs serão emitidas via internet. Vão existir também as GTAs emitidas em papel, principalmente para a utilização desses documentos em localidade com pouco acesso à internet ou se o profissional não tiver facilmente esse acesso. Só que enquanto esse sistema não é construído e validado adequadamente, a GTA hoje no país continuará sendo emitida pelo MAPA. O MPA acordou com o MAPA a continuidade da emissão de GTAs até que essa nova ferramenta seja totalmente construída. A nossa expectativa é que até o final de 2011 já tenhamos o sistema testado e validado, para começarmos a implementação no início de 2012.

Panorama da AQÜICULTURA: No caso do trânsito internacional, como devem proceder os interessados em importar ou exportar organismos aquáticos?

Henrique Figueiredo: Como está estabelecido no Acordo de Cooperação Técnica, qualquer pedido de importação ou de exportação continuará sendo encaminhado ao MPA através do MAPA. O interessado deve procurar as Superintendências Federais de Agropecuária (SFAs) do MAPA em cada estado da federação. Esses pedidos serão protocolados pelo MAPA para as Superintendências Federais de Pesca e Aquicultura, para análise nos quesitos sanitários. No caso de uma importação, a aprovação ou não do pedido vai ser feita após uma análise do risco sanitário feita pelo MPA, conforme os critérios estabelecidos pela Instrução Normativa nº 12, de 20 de agosto de 2010, publicada pelo MPA. E no caso de uma exportação, a aprovação se dará após a declaração que o país importador exigir do Brasil. Por fim, emitiremos a autorização final para o trânsito solicitado, que vai ser executada, no caso do trânsito internacional, pelo Serviço de Vigilância Agropecuária Internacional do MAPA (VIGIAGRO), ou, no caso do trânsito nacional, pelas próprias SFAs.

Panorama da AQÜICULTURA: O mesmo vale para importação de ovos e matrizes?

Henrique Figueiredo: Sim, vale para qualquer empresa que tenha interesse de importar matriz para reprodução, ovos embrionados, sêmen, sementes ou qualquer outra forma de multiplicação. Esse pedido também vai ser feito diretamente ao MAPA, através da SFA do estado correspondente a empresa. A SFA vai encaminhar ao MAPA sede, que por sua vez encaminhará ao MPA. Nós faremos a análise técnica e de risco sanitário daquela importação, ou daquela exportação, e vamos aprovar ou não a introdução no país. Uma vez aprovada, quem vai executar o trânsito é o MAPA, via VIGIAGRO, que é o sistema de aduanas e controle de fronteiras para questões sanitárias.

Panorama da AQÜICULTURA: Temos conversado sobre importação de pescado, no caso do pescado processado, do panga, por exemplo, do camarão. Como se delimitam essas atribuições?

Henrique Figueiredo: É um aspecto importante. O MPA não tem atribuições na inspeção de pescado, então toda inspeção de pescado feita rotineiramente no país, pelo SIF, é uma atribuição exclusiva do MAPA. Porém, quando nós realizamos a importação de pescado existe um risco intrínseco, ou potencial, desse pescado veicular algum agente infeccioso que, uma vez introduzido no território nacional, possa se espalhar nos nossos animais, tanto no ambiente natural quanto nas atividades de aquicultura. Portanto, esse é um risco sanitário que todo país tem o direito de avaliar, ou toda Autoridade Sanitária tem o direito de avaliar quando da introdução de uma determinada commodity ou de um determinado produto importado. Então, nesse contexto, o MPA já estabeleceu um sistema de análise de risco de importação, baseado em metodologia internacional estabelecida pela Organização Mundial de Saúde Animal, que é a OIE. De modo que de agora em diante todo novo pescado que seja introduzido no mercado brasileiro estará condicionado à avaliação prévia do MPA, que fará uma análise de risco para avaliar se esse pescado realmente tem um risco potencial de introduzir agentes infecciosos no Brasil, ou não.

Panorama da AQÜICULTURA: O mesmo protocolo para uma análise de risco feita do pescado processado é semelhante ao aplicado no caso da introdução de um animal vivo?

Henrique Figueiredo: Essa metodologia pode ser aplicada para avaliar o risco na introdução de um animal vivo ou de uma forma de multiplicação no país, como por exemplo, sêmen, ovos, etc.. Também pode ser utilizada para a avaliação de um risco de um pescado processado ser introduzido no Brasil. Não podemos esquecer que com aquelas carcaças também pode ocorrer a introdução de um agente infeccioso que seja danoso para o ambiente brasileiro.

Panorama da AQÜICULTURA: O MPA já construiu um protocolo de análise de risco?

Henrique Figueiredo: Sim, esse protocolo de análise de risco é estabelecido, na verdade, pela OIE e o Brasil é signatário. Portanto, nós temos que seguir essas normativas. Além disso, o protocolo de análise de risco da OIE é o que é prontamente reconhecido como metodologia válida pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Hoje, nas relações internacionais de comércio entre os países, qualquer protesto que um país possa fazer em relação a outro por alguma barreira sanitária à importação, a primeira coisa que vai ser verificada pela OMC é se esse país que ditou ou que estabeleceu essa barreira usou a metodologia científica validada pela OIE para fazer esse processo. Então é muito importante para o país que a gente siga esse tipo de metodologia, que demora um certo tempo para a análise, devido a sua complexidade, mas que garante realmente a transparência da relação com o mercado internacional.

Panorama da AQÜICULTURA: Não basta apenas não ter patógenos de notificação obrigatória, o país tem que provar que não os tem. O que ainda falta para que o país tenha como monitorar e informar ao resto do mundo o estado sanitário dos seus organismos aquáticos?

Henrique Figueiredo: Isso faz parte de uma política do MPA. O estabelecimento desse tipo de procedimento se dá por duas vias principais e complementares. Uma é o país dispor de uma rede oficial de diagnóstico que seja capaz de detectar todas as enfermidades de notificação obrigatória previstas pela OIE; e a outra é, a partir dessa estrutura montada de diagnóstico, estabelecer os programas de controle, vigilância epidemiológica e erradicação de enfermidades, caso essa já ocorra no país. Para qualquer programa de controle sanitário, vigilância e erradicação da enfermidade funcionar é preciso ter uma rede de diagnóstico oficial estabelecida. Então, um precede o outro. Nesse sentido o MPA estabeleceu no Acordo de Cooperação Técnica uma parceria com o MAPA, de modo que o MPA vai fomentar dentro do MAPA a finalização da estrutura para o diagnóstico de todas as enfermidades dos três principais grupos – peixes, crustáceos e moluscos -, que são os previstos no manual da OIE. Então, para esses três grupos a nossa intenção é ter todo o diagnóstico montado, pronto para ser feito e de modo oficial. Ou seja, que tenha validade tanto para o Brasil como também para ser apresentado em questões internacionais. Isso já foi acordado no nosso Acordo de Cooperação Técnica. Caberá ao MPA prover o recurso financeiro para a implantação e execução dessas metodologias no LANAGRO, que é a rede nacional de laboratórios de referência animal do MAPA. Nós também vamos monitorar tecnicamente todo o desenvolvimento do trabalho dentro do ministério. A nossa intenção é que até o final de 2011 a gente tenha o painel completo das enfermidades montado dentro da OIE, com prioridade para peixes e camarões, até porque, no caso da carcinicultura, já temos enfermidades “relatadas” no país e precisamos melhorar o nosso sistema de controle para garantir esse processo de acesso do nosso produto ao mercado internacional. A partir da montagem dessas redes de diagnóstico, nós poderemos também editar futuramente os programas nacionais de controle e erradicação de enfermidades para carcinicultura e, se necessário, para a piscicultura e ostreicultura.

Panorama da AQÜICULTURA: O Ministério da Pesca e Aquicultura também é responsável pelo controle de resíduos?

Henrique Figueiredo: Na questão dos resíduos a Lei e o Decreto estabelecem, principalmente o Decreto nº 7024, que o Ministério da Pesca e Aquicultura é responsável pelo monitoramento, controle e fiscalização da presença de resíduos no recurso pesqueiro, estando esse recurso pesqueiro no ambiente natural ou na aquicultura. A decisão do MPA é estabelecer um Programa Nacional de Controle de Resíduos na Aquicultura e na Pesca.

Panorama da AQÜICULTURA: O que são os resíduos?

Henrique Figueiredo: Resíduo é qualquer tipo de contaminante, natural ou artificial, que possa atingir esse recurso pesqueiro e que possa provocar nesses animais um nível de contaminação que crie risco para o ser humano através do consumo. No caso da mitilicultura e da ostreicultura os principais resíduos são as ficotoxinas produzidas pelas algas. E no caso da piscicultura engloba, principalmente, a detecção de pesticidas que podem ser oriundos de atividades agrícolas adjacentes às áreas de aquicultura e resíduos de medicamentos aprovados para uso na aquicultura como, por exemplo, antibióticos, antiparasitários e outros futuros medicamentos que venham a ser aprovados. Essa análise de resíduo passa a ser responsabilidade do MPA. É muito importante frisar que o MAPA já possui o Programa Nacional de Controle de Resíduos e Contaminantes (PNCRC), que já faz a análise para pescado. Existe um sub-programa dentro desse programa, específico para conformidade de pescado e, no nosso Acordo de Cooperação Técnica, já estamos prevendo que o Programa de Monitoramento de Contaminantes no MPA será acoplado ao PNCRC, de modo que toda vez que uma não conformidade ou que uma contaminação seja detectada no pescado, essa informação seja prontamente repassada ao MPA para que ele possa fazer o rastreamento dessa contaminação, seja no recurso pesqueiro que está no ambiente natural, seja no sistema de aquicultura.

Panorama da AQÜICULTURA: Isso não pressupõe que podem vir a ser feitas análises de rotina no pescado cultivado, por exemplo, ou isso só vai ser feito no pescado que for exportado, ou seja, em ambientes “sifados”?

Henrique Figueiredo: O arcabouço e a estrutura técnica do programa ainda estão em discussão e obviamente serão apresentados através de uma consulta pública, para que várias pessoas do setor produtivo e da sociedade possam se manifestar e fazer sugestões importantes para o estabelecimento dele. Mas ele não vai ter foco na exportação. Vai ter foco na análise dos produtos inclusive que abastecem o mercado brasileiro, obviamente do recurso pesqueiro que vai virar o produto que abastece o mercado brasileiro. Em algumas situações particulares, como o caso das ostras, isso nem está relacionado somente à exportação, mas também à segurança do consumidor como, por exemplo, a detecção das ficotoxinas. É preciso haver um monitoramento constante da floração de algas e da presença das toxinas no ambiente aquático para saber se é seguro ou não o consumo daquela ostra, naquele momento.

Panorama da AQÜICULTURA: Outro assunto polêmico é o assunto do uso da metiltestosterona. Isso tem a ver?

Henrique Figueiredo: Existe uma questão hoje muito debatida no Brasil sobre o registro da 17 α-metiltestosterona para uso em aquicultura, assim como os extratos hipofisários que são insumos biológicos para serem utilizados na reprodução induzida e que nem são um produto farmacêutico elaborado. O registro de todos esses produtos cabe ao MAPA e o MPA não tem qualquer atribuição legal nessa área. Mas o nosso Acordo de Cooperação Técnica prevê que toda vez que o MAPA receber pedidos de registros de produtos destinados à aquicultura, poderá solicitar a cooperação técnica do MPA de modo a tornar mais célere a análise técnica da pertinência de aprovação desses produtos, que é algo estratégico de interesse para aquicultura no Brasil. Sobre a 17 α-metiltestosterona, o MAPA está expedindo uma licença temporária para qualquer empresa que queira importar. O uso não está proibido. O que se tem hoje é uma licença temporária do MAPA, que qualquer um pode pedir.