Por Ricardo C. Martino
Unidade de Tecnologia de Pescado
FIPERJ – Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro,
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Tanto em animais como em plantas, existe um grupo de substâncias que são caracterizadas pela insolubilidade em água e pela solubilidade em solventes orgânicos. Esse grupo de substâncias é genericamente chamado de lipídios. Os lipídios são moléculas orgânicas formadas por átomos de carbono, além de oxigênio e hidrogênio. Além disso, os fosfolipídios possuem também hidrogênio e fósforo. Os lipídios são divididos em cinco classes principais, que são: ácidos graxos, triglicerídeos, fosfolipídios, esteróides e esfingolipídios.
Para os peixes, os lipídios desempenham um papel nutricional muito importante, servindo, tanto como fonte de energia, como também como fonte de ácidos graxos essenciais1 . Além disso, eles atuam também como transportadores de certos nutrientes não lipídicos e também das vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K).
Do ponto de vista quantitativo para os peixes, os lipídios neutros (triglicerídeos) são os mais abundantes, embora os fosfolipídios desempenhem um importante papel, tanto nutricional, como fisiológico.
Os primeiros estudos sobre a importância dos lipídios na nutrição de peixes são da década de 60. Atualmente, sabe-se que os lipídios são muito bem metabolizados pelos peixes e que as exigências nutricionais das principais espécies de interesse da aqüicultura estão bem documentadas. Consequentemente, um grande número de fontes lipídicas, seja de origem vegetal, seja de origem animal, é amplamente utilizado em rações para a aqüicultura.
Os estudos realizados pelo “Institute of Brain Development and Human Nutrition” da “University of North London”, demonstraram a importância dos lipídios presentes nos peixes para a evolução da raça humana. Essa importância está relacionada à enorme exigência de ácidos graxos altamente poliinsaturados da série n-3(2 ), principalmente o eicosapentaenóico (20:5n-3 ou EPA) e o docosahexaenóico (22:6n-3 ou DHA) que são encontrados em elevadas concentrações nos pescados, para o desenvolvimento do cérebro humano nas diferentes fases do crescimento.
Origem dos ácidos graxos
Os mais diversos estudos sobre o metabolismo de ácidos graxos em peixes demonstraram que as exigências são diferentes para espécies distintas. Isto fica muito mais evidenciado quando se compara o perfil de ácidos graxos entre as espécies de água doce e as espécies marinhas. Desta forma, quando se pretende determinar as exigências de ácidos graxos, é muito importante considerar a origem dos animais em relação ao ambiente em que vivem.
A base da cadeia alimentar marinha é constituída de algas unicelulares, que são compostas de aproximadamente 20% de seu peso seco de lipídios e 50% desses lipídios estão presentes, como ácidos graxos poliinsaturados (PUFA) da série n-3. As algas são a base alimentar do zooplancton, que servem de alimento para peixes carnívoros, formando assim toda a cadeia alimentar
Como praticamente toda essa cadeia alimentar é formada por seres ricos em ácidos graxos da série n-3, o EPA e o DHA, os peixes marinhos perderam, pelo menos aparentemente, a capacidade de alongamento e de dessaturação de ácidos graxos. Este processo consiste na transformação de um ácido graxo de cadeia mais curta para o seu correspondente de cadeia mais longa. Esse processo bioquímico, que é muito importante na formulação das rações, será abordado com mais detalhes posteriormente.
As microalgas de água doce possuem uma constituição de ácidos graxos muito similar às de origem marinha. Entretanto, o perfil de ácidos graxos destas algas apresentam uma maior concentração de ácidos graxos poliinsaturados da série n-6. Essa importante diferença é que vem caracterizar e determinar a composição de ácidos graxos entre as espécies de peixes de água doce e marinha.
Os ácidos graxos C 18 e n-6 PUFA são mais abundantes em espécies de peixes de água doce do que em espécies de peixes marinhos, apesar de que os peixes de água doce apresentam também em seu perfil os ácidos graxos n-3 PUFA, o EPA e o DHA, principalmente nos salmonídeos. A elevada concentração de ácidos graxos PUFA n-6 nas espécies de água doce é responsável pela menor razão n-3/n-6 nestas espécies. Esta razão é muito importante em relação ao equilíbrio do consumo de alimentos ricos em ácidos graxos da série n-6 e da série n-3. Nas espécies de água doce a razão n-3/n-6 varia de 1 a 4, enquanto que nas espécies marinhas varia de 5 a 10.
Uma enorme variedade de lipídios, seja de origem vegetal ou de origem animal, é utilizada como ingrediente em rações para a aqüicultura. As gorduras de animais terrestres, como por exemplo a banha de porco ou o sebo, são fontes lipídicas muito utilizadas em rações para peixes. Isto se deve principalmente ao preço destes ingredientes, que é menor do que o preço dos óleos de origem vegetal ou animal. Todavia, essa fontes lipídicas são deficientes em ácidos graxos essenciais (AGE) e, portanto, somente podem ser utilizadas em rações, quando associadas com outras fontes lipídicas que venham a suprir a exigência dos peixes em relação aos AGE. Lipídios de origem vegetal, principalmente o óleo de soja, são amplamente utilizados em rações para peixes. Entretanto, os óleos vegetais têm uma utilização limitada como fonte de AGE para espécies marinhas, pois estas espécies possuem uma exigência específica para os ácidos graxos EPA e o DHA , que não estão presentes nos óleos vegetais.
Os lipídios de origem marinha, como por exemplo o óleo de fígado de bacalhau, o óleo de fígado de lula, entre outros, ricos nos ácidos EPA e DHA, são muito utilizados, tanto em rações para peixes de água doce, principalmente para os salmonídeos, como também para espécies de peixes e camarões marinhos. A utilização destas fontes lipídicas exige, todavia, certos cuidados, pois são mais susceptíveis a oxidação. Além disso, estão sujeitas a variações de preços, causadas pela estagnação das populações nos oceanos, dos peixes utilizados na fabricação dos óleos.
A partir do momento que o preço do óleo de peixe passou a custar mais caro do que o do óleo de soja, a indústria mundial de rações vem, de forma gradativa, aumentando a quantidade de óleo de soja nas rações. Isso não quer dizer que as rações estejam mais pobres nos ácidos graxos EPA e DHA, pois um balanceamento adequado pode fornecer ao peixe a quantidade necessária exigida destes ácidos graxos.
Lipídios como fonte de ácidos graxos
A importância dos lipídios como fonte de ácidos graxos essenciais (AGE) para peixes já foi comprovada por diversos autores. Essa importância está relacionada principalmente à incapacidade dos peixes em sintetizar de novo os ácidos graxos das séries n-6 e n-3. Sabe-se, também, que fatores como a salinidade e a temperatura influenciam de maneira bastante acentuada as exigências de ácidos graxos das diferentes espécies de peixes. Como descrito anteriormente, as espécies marinhas possuem uma exigência distinta em relação aos ácidos graxos, quando comparadas com as espécies de água doce.
Os peixes são animais de sangue frio e, como conseqüência, cada espécie tem a sua preferência por uma determinada temperatura, dentro de um limite de tolerância térmica. Os peixes tropicais como a tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus) e a carpa comum (Cyprinus carpio) tem preferência por temperaturas mais elevadas, entre 28-32 o C e 24-28 o C, respectivamente. Por outro lado, enquanto a carpa tolera temperaturas até 5 oC, a tilápia se torna inativa em temperaturas entre 15-12 oC, podendo morrer se a temperatura chegar abaixo dos 10 oC. Já a truta arco-íris (Oncorhynchus mykiss), ao contrário destas espécies não tolera temperaturas muito elevadas, tendo como limites para a engorda temperaturas em torno de 18 oC, enquanto que, tanto para a reprodução, como para a desova, a temperatura deve estar abaixo dos 10 oC. Dessa forma concluímos que como as melhores taxas de desempenho estão intimamente relacionadas à temperatura, as necessidades de ácidos graxos também devem estar diretamente relacionadas a estas variações.
À parte da influência da temperatura e da salinidade em relação às exigências de ácidos graxos, a alimentação é o principal fator que influencia na composição de ácidos graxos dos peixes.
As intensas pesquisas realizadas acerca das exigências de lipídios para peixes nas últimas duas décadas, conseguiram estabelecer com exatidão quais são essas verdadeiras exigências para muitas espécies importantes para a aqüicultura.
Espécies de água fria como a truta arco-íris, por exemplo, possuem uma necessidade de AGE que é suprida quando são alimentadas com rações contendo 1% do ácido linolênico (18:3n-3, LNA) ou 0,5% dos ácidos graxos EPA e DHA.
A ausência destes ácidos graxos nas rações causa uma série de problemas de ordem nutricional, como, por exemplo, a perda de peso, o aumento da umidade corporal, entre outros. Sabe-se que o nível de lipídios nas rações afeta diretamente as necessidades de ácidos graxos. Para a truta, a demanda para o ácido linolênico é de 20% em relação ao nível de lipídio, enquanto que para os ácidos EPA e DHA, esta demanda é de 10% aproximadamente.
Espécies tropicais, com exceção da Tilapia zilli e da O. niloticus, as quais possuem um exigência exclusiva para ácidos graxos n-6 PUFA, possuem uma exigência tanto para o ácido linolêico (18:2n-6, LA), como para o ácido graxo,18:3n-3. Sabe-se que a exigência para o ácido 18:3n-3 está em torno de 1-2% do peso seco da ração. Além disso, essa exigência pode ser reduzida para cerca de 0,5%, se os ácidos graxos EPA e DHA forem adicionados à ração.
A carpa comum, uma das espécies mais estudadas na aqüicultura, possui uma exigência de aproximadamente 1% para os ácidos 18:2n-6 e 18:3n-3.
Além de sua vital importância no desempenho nutricional dos peixes, os ácidos graxos desempenham também um importantíssimo papel na reprodução. Essa importância pode ser comparada ao do tocoferol para animais superiores. Estudos demonstraram que a qualidade, tanto dos ovos, como das larvas de linguado foram fortemente afetados pela quantidade e pelo tipo de ácido graxo presente na ração. Sabe-se, também, que os ácidos graxos altamente poliinsaturados, seja de forma direta, ou através de seus metabólitos, afetam a maturação dos peixes.
Lípidios como fonte de energia
Sabe-se que os peixes necessitam de quantidades muito mais elevadas de proteína do que os pássaros e que os mamíferos. Isso porque as espécies de peixes, em sua maioria, são carnívoras e, conseqüentemente, possuem pouca capacidade de digerir carboidratos. Os lipídios atuam de forma a resguardar a proteína que porventura seria utilizada como energia, permitindo que essa proteína seja utilizada em sua função principal, que é a plástica (crescimento). Este efeito é denominado de “efeito de poupança da proteína”, já tendo sido demonstrado em muitas espécies de peixes. Dessa forma, é possível diminuir a quantidade de proteína na ração, trazendo muitos benefícios, com destaque para a diminuição do custo da ração, já que os ingredientes de origem protéica são os mais caros. Além disso, sabe-se que o nitrogênio está intimamente relacionado à proteína. Portanto, a diminuição do nível de proteína na ração permite a diminuição da descarga da quantidade de nitrogênio para o meio ambiente através das fezes dos peixes.
A atual tendência mundial na fabricação de rações para peixes é de aumentar o nível de lipídios. Esse aumento tende a promover uma elevação da taxa de eficiência da proteína e da taxa da proteína líquida utilizada. A taxa de eficiência da proteína é definida como sendo a razão entre o ganho de peso obtido e a quantidade total de proteína ingerida, enquanto que, a taxa de proteína líquida utilizada, corresponde à quantidade total de proteína utilizada para a manutenção e o crescimento dos peixes. Como o nitrogênio excretado pelos peixes está intimamente relacionado à quantidade de proteína na ração, a utilização, de forma mais eficiente da proteína pelos peixes proporciona uma diminuição da descarga de nitrogênio para o meio ambiente, causando assim uma diminuição do efeito poluente das rações.
O aumento do nível de lipídios, contudo, pode acarretar uma série de exigências e como conseqüência, alguns cuidados devem ser tomados em relação a isto. Tais cuidados, entre outros assuntos serão discutidos numa próxima oportunidade.
(1) Ácidos graxos essenciais são aqueles que não são sintetizados pelo organismo, tendo que estar obrigatoriamente presente no alimento. (2) A terminologia n é igual a w (ômega), ou seja: n-3 = w 3; n-6 = w 6