Iguais ou diferentes? A diversidade dos Streptococcus agalactiae que infectam a tilápia do Nilo no Brasil

Em edições anteriores de Panorama da AQÜICULTURA abordamos em algumas matérias a importância das infecções por Streptococcus agalactiae em tilápia do Nilo no Brasil. E, ao longo desses últimos anos, com a prestação de serviços laboratoriais, obtivemos diferentes amostras dessa bactéria a partir de pisciculturas localizadas em vários estados brasileiros. Com isso, algumas perguntas de caráter científico, mas também de muita importância prática surgem: todos os Streptococcus agalactiae que ocorrem nas pisciculturas brasileiras são iguais? Se forem diferentes, existirá algum “tipo” mais comum, de ocorrência mais frequente? Será que em uma mesma fazenda poderemos ter mais de um tipo de S. alagactiae ocorrendo simultaneamente? Para tentar responder a essas perguntas delineamos alguns experimentos que serão apresentados aqui e que foram, recentemente, publicados por nossa equipe no periódico Veterinary Microbiology.

Por:
Henrique César Pereira Figueiredo
Médico Veterinário, Doutor em Microbiologia
Professor Adjunto, Departamento de Medicina Veterinária Preventiva
Escola de Veterinária da UFMG.
Coordenador do AQUAVET – Laboratório de Doenças de Animais Aquáticos
Ulisses de Pádua Pereira
Médico Veterinário, Mestre em Ciências Veterinárias, Estudante de doutorado
Gláucia Frasnelli Mian
Médica Veterinária, Doutora em Microbiologia Agrícola. Pós-Doc do AQUAVET


Com o crescente aumento da piscicultura em todo o mundo, torna-se imprescindível a realização de estudos mais avançados a respeito dos principais patógenos associados a grandes perdas econômicas na produção de peixes, como por exemplo, Streptococcus agalactiae.

Na aquicultura a bactéria Streptococcus agalactiae (grupo B de Lancefield; GBS) é um patógeno emergente o qual tem sido associado a considerável morbidade e mortalidade em fazendas produtoras de peixes em todo o mundo. A doença é caracterizada por septicemia e meningoencefalite e os principais sinais clínicos observados são anorexia, exoftalmia (protrusão do globo ocular) uni ou bilateral, natação errática, opacidade córnea e hemorragias (principalmente na base das nadadeiras, opérculo e boca), conforme já discutido por nós em edições anteriores.

Vários estudos relataram surtos da doença em diversas espécies de peixes estuarinos, marinhos e de água doce. A intensidade dos surtos pode estar associada a vários fatores ambientais, incluindo altas temperaturas da água, aumento dos níveis de amônia, baixos níveis de oxigênio dissolvido e fatores genéticos da estirpe bacteriana envolvida. No Brasil, um estudo feito por nossa equipe relatou surtos de S. agalactiae em nove fazendas produtoras de tilápias do Nilo (Oreochromis niloticus), localizadas em seis estados brasileiros, associados a elevadas temperaturas e densidade animal (Mian et al., 2009). Contudo, ainda não tínhamos no Brasil um estudo sistemático capaz de responder às questões apresentadas anteriormente.

Buscando a diferença: os princípios darwinianos de evolução das espécies

A teoria da evolução das espécies pode nos ajudar na compreensão da diversidade genética de bactérias? Com certeza sim. Para isso vamos usar alguns exemplos práticos que a própria piscicultura nos ensina. Todas as tilápias do Nilo que cultivamos são iguais? Crescem da mesma forma ou com a mesma eficiência? É claro que não. Basta comprarmos alevinos de tilápia de diferentes larviculturas para observarmos que os peixes podem ser diferentes em detalhes morfológicos, pigmentação, desenvolvimento, etc.. E, é justamente por isso que vários produtores e pesquisadores podem selecionar linhagens diferentes de peixes, por causa da diversidade genética que cada espécie animal pode apresentar. Essa diversidade facilita a adaptação da espécie ao longo do tempo sendo, portanto, um princípio evolutivo darwiniano. De forma interessante, esse mesmo conceito pode ser aplicado aos patógenos, como a bactéria Streptococcus agalactiae de peixes.

Se os peixes são capazes de evoluir geneticamente por causa da diversidade inicial de sua população, os patógenos também precisarão co-evoluir para não serem eliminados pela seleção natural. Depois de vários anos trabalhando na área percebemos que vários técnicos, bem como estudantes, tendem a considerar os patógenos como se fossem “clones”, ou seja, todos sempre iguais. Daí, se todos forem iguais, podemos esperar que cada doença se manifeste sempre da mesma maneira, que os sinais clínicos sejam muito semelhantes, e que o mesmo tipo de tratamento funcionará igualmente em todas as situações. Essa definitivamente não é a realidade mais comum e precisamos então entender a diversidade (variabilidade genética e fisiológica) dos patógenos que ocorrem nas pisciculturas. E imagine se você já tem em seu cultivo de tilápias a ocorrência de infecções por S. agalactiae e, durante a compra de alevinos, você introduz em sua propriedade outro variante (ou tipo) dessa bactéria? Fica claro então que temos que conhecer mais para controlar com mais eficiência.

E como podemos estudar essa possível diversidade?

Sabemos que há um trânsito cada vez mais intenso de peixes entre os sistemas de produção e isso pode estar associado ao carreamento do patógeno de uma região para outra. Porém, para elucidarmos esta questão precisamos utilizar ferramentas que possam nos ajudar a comprovar e/ou inferir que amostras isoladas de uma região são as mesmas isoladas em outra localidade (ou seja, se são idênticas geneticamente). Para isso, fazemos uso de técnicas de biologia molecular, as quais servem como marcadores de alguma(s) região(ões) do genoma bacteriano, caracterizando as amostras de acordo com seus perfis genéticos (também denominado padrão genético). Atualmente estas técnicas estão sendo amplamente utilizadas para vários patógenos de animais e seres humanos. Estas auxiliam no entendimento a respeito do comportamento do patógeno, da sua patogenicidade e se somente um tipo genético está presente em um ambiente (o que pode ser utilizado para inferir sobre a disseminação do patógeno).

Várias técnicas de biologia molecular têm sido utilizadas em estudos que visam caracterizar os perfis genéticos de S. agalactiae, tais como MLST (Multi Locus Sequencing Typing), RAPD (Random Amplification of Polymorphic DNA), estudo das sequências de nucleotídeos do gene rRNA 16S ou da região espaçadora intergênica 16S-23S (denominado 16S-23S ISR) e PFGE. Esta última tem sido bastante utilizada por demonstrar resultados confiáveis e de boa repetibilidade. Recentemente temos usado algumas dessas técnicas em nosso laboratório, mas nessa matéria apresentaremos apenas os resultados obtidos a partir da técnica de PFGE. Resumidamente a técnica de PFGE é feita em três etapas:

1- obtenção do DNA cromossômico;
2- restrição enzimática deste DNA;
3- corrida e interpretação dos resultados (Figura 1).

Figura 1: Representação esquemática das três etapas da técnica de PFGE
Figura 1: Representação esquemática das três etapas da técnica de PFGE

Para a primeira etapa incorpora-se as células bacterianas em pequenos fragmentos de gel de agarose (denominados plugs) e posteriormente imerge-se estes plugs em uma solução de lise, a qual irá quebrar a parede da célula bacteriana liberando seu DNA ou material genético. Já com o DNA bacteriano extraído, faz-se a digestão enzimática deste DNA cromossômico bacteriano (que é circular), visando obter em média de 8 a 14 fragmentos (ou pedaços) de DNA. Esta enzima de restrição utilizada é uma enzima específica que reconhece e corta sequências específicas de nucleotídeos no DNA bacteriano. Com isso, o número e tamanho dos fragmentos de DNA irão variar de acordo com o número e a localização dos cortes que a enzima fizer. A última etapa consiste em submeter estes fragmentos de DNA, clivados pela enzima de restrição, a uma eletroforese em campo pulsante, onde os pulsos elétricos são alternados (em diferentes sentidos) e intercalados (em intervalos de tempo pré-estabelecidos) para que se tenha uma boa separação dos fragmentos de DNA. Estes pedaços de DNA irão “andar” no gel de agarose de acordo com o seu tamanho, ou seja, fragmentos maiores de DNA irão migrar menos no gel de agarose enquanto que os fragmentos menores irão migrar maiores distâncias. Para se fazer este tipo de técnica é necessário que se tenha um aparelho específico de PFGE, o qual é constituído de uma cuba de eletroforese, um computador central e um refrigerador. Após corar o gel com brometo de etídeo (uma substância que se intercala na dupla fita de DNA e quando exposta a luz UV emite fluorescência) captura-se a imagem do gel digitalmente para posterior análise em um software específico denominado Gel Compar II® (Applied Maths, Belgium), que permite a análise do grau de proximidade genética entre isolados bacterianos diferentes.

Primeiramente se faz uma análise visual da imagem de PFGE e posteriormente a imagem é analisada pelo software para a construção do dendograma de similaridade genética dos padrões de bandas de cada amostra observado pelo PFGE. Este programa de computador realiza análises estatísticas a partir do padrão genético de PFGE de cada amostra e constrói um dendograma (um tipo de árvore de similaridade) que possui em sua porção superior esquerda uma régua que indica a similaridade entre as amostras analisadas e na sua porção direita pode-se observar recortes do gel correspondentes às respectivas canaletas das amostras (Figuras 2 e 3). A interpretação dos padrões de bandas (fragmentos de DNA obtidos a partir do corte pela enzima de restrição) é realizado, de acordo com a posição e número dessas bandas. Amostras que obtiveram o mesmo número e posição de bandas no gel (ou seja, possuem o mesmo número e localização de sítios de corte da enzima de restrição no DNA cromossômico) são consideradas clones, ou seja, por possuírem o mesmo padrão de bandas (padrão genético) são amostras muito próximas geneticamente ou iguais (por isso a denominação “clone”).

Para avaliar a variabilidade genética dos S. agalactiae no Brasil foram analisadas por PFGE, 27 amostras de S. agalactiae oriundas dos seguintes estados brasileiros: São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Ceará, Santa Catarina, Bahia e Espírito Santo. Este estudo foi realizado com o intuito de se ter conhecimento sobre a diversidade genética dos isolados brasileiros de S. agalactiae envolvidos em surtos de estreptococose em peixes.

Diferentes clones de Streptococcus agalactiae estão difundidos no Brasil

No estudo realizado, utilizando o PFGE, encontramos cinco padrões genéticos distintos em 27 amostras de S. agalactiae isoladas de tilápias do Nilo em diferentes estados brasileiros (Figura 2). Os cinco padrões foram denominados pelas letras A, B, C, D e E. Ainda, alguns isolados apresentaram maior semelhança genética entre si, sendo denominados subgrupos A1 e A2. Como pode ser observado na figura 2, esses dois subgrupos apresentaram um grau de similaridade de aproximadamente 81%. E que inferências podemos fazer a partir desses resultados?

Figura 2: Representação esquemática dos cinco padrões genéticos por PFGE encontrados nas amostras de S. agalactiae isoladas de peixes no Brasil 
Figura 2: Representação esquemática dos cinco padrões genéticos por PFGE encontrados nas amostras de S. agalactiae isoladas de peixes no Brasil

1 – O Streptococcus agalactiae no Brasil não é uma população clonal e diferentes tipos da bactéria estão presentes nos cultivos ao longo do país;
2 – O S. agalactiae do tipo A (subtipos A1 e A2) foram os mais frequentes nas amostras avaliadas (21 de 27) e, possivelmente, o de maior ocorrência no Brasil;
3 – Duas fazendas apresentaram mais de um tipo genético da bactéria ocorrendo simultaneamente (fazendas A e I, tabela 1).

Tabela 1: Padrões genéticos por PFGE dos isolados de S. agalactiae em cada uma das nove fazendas produtoras de tilápias do Nilo
Tabela 1: Padrões genéticos por PFGE dos isolados de S. agalactiae em cada uma das nove fazendas produtoras de tilápias do Nilo

Ainda, outros comentários pertinentes podem ser feitos a partir das conclusões apresentadas. A ocorrência de um tipo genético mais frequente, o tipo A, sugere que vias comuns de difusão desse clone podem estar facilitando o seu espalhamento pelo país. Como sabemos, uma única larvicultura comercial pode vender alevinos para fazendas de engorda de vários estados promovendo a difusão de um clone específico de S. agalactiae. A ocorrência de duas fazendas (A e I) apresentando mais de um tipo de S. agalactiae demonstra que esses diferentes tipos podem co-existir em uma mesma propriedade e sugere que a aquisição de animais de diferentes origens pode facilitar esse processo. Em ambos os casos havia relatos de aquisição prévia de peixes por mais de uma fonte comercial.

Como foi comentado anteriormente, tipos genéticos distintos de uma mesma espécie de bactéria podem apresentar características também diferentes, como o perfil de resistência a determinado antibiótico, o grau de patogenicidade ou ainda, a possibilidade de proteção dos peixes, frente a cada tipo genético de bactéria, por vacinação. Para responder à questão da patogenicidade nós selecionamos um representante de cada tipo genético de S. agalactiae e realizamos um ensaio de infecção experimental em tilápia do Nilo. As bactérias de todos os tipos genéticos (A a E) foram capazes de induzir mortalidade nos peixes inoculados, porém, com sinais clínicos relativamente distintos. Para alguns tipos a indução de natação errática e exoftalmia foram mais frequentes que para outros. Isso demonstra que, em condições de campo, nem sempre teremos a mesma manifestação clínica da doença. Quanto à possibilidade de proteção cruzada entre os diferentes tipos genéticos, usando uma vacina contendo apenas desses tipos estamos realizando experimentos para responder a essa hipótese. Devemos lembrar, é claro, que ainda não temos vacinas no mercado brasileiro para o combate às infecções pelo Streptococcus agalactiae em peixes.

O esquema de classificação genética estabelecido por nós será ainda utilizado em vários outros estudos e funcionará como uma ferramenta de monitoramento da difusão dos variantes genéticos de S. agalactiae no país, a partir de cada novo caso que venha a ser acompanhado pelo nosso laboratório. Os dados apresentados aqui, bem como outros que serão alvo de nossas discussões nas próximas edições de Panorama da AQÜICULTURA, já estão publicados e podem ser acessados nas duas referências citadas a seguir:

Mian, G.F.; Godoy, D.T.; Leal, C.A.G.; Costa, G.M.; Figueiredo, H.C.P. Aspects of the natural history and virulence of S. agalactiae infection in Nile tilapia. Veterinary Microbiology. 136: 180-183, 2009.

Pereira, U.P.; Mian, G.F.; Oliveira, I.C.M.; Benchetrit, L.C; Figueiredo, H.C.P. Genotyping of Streptococcus agalactiae strains isolated from fish, human and cattle and their virulence potential in Nile tilapia. Veterinary Microbiology. 140: 186-192, 2010.

O Laboratório de Doenças de Animais Aquáticos AQUAVET muda de endereço

Conforme já divulgado por Panorama da AQÜICULTURA em edição anterior, a Universidade Federal de Minas Gerais iniciou em 2009 a oferta do curso de Bacharelado em Aquacultura, ministrado na Escola de Veterinária da UFMG. Também nesse ano eu fiz o concurso público para professor adjunto, na cadeira de Sanidade de Animais Aquáticos, sendo aprovado. Então, desde o dia 13 de novembro sou oficialmente professor da UFMG e não pertenço ao quadro de professores da Universidade Federal de Lavras, onde trabalhei nos últimos 12 anos. Para não haver problemas de continuidade dos diversos projetos de pesquisa que eu executo, bem como da prestação de serviços de diagnóstico ao setor produtivo, fizemos a transferência da estrutura do AQUAVET da UFLA para a UFMG, inclusive dos sistemas utilizados para estudos de infecção experimental. Além disso, os cinco estudantes de doutorado, três de mestrado e um pós-doutorando que desenvolviam as suas atividades na UFLA passam a atuar no novo laboratório instalado na UFMG. A localização estratégica do nosso laboratório na cidade de Belo Horizonte já está fazendo diferença na facilidade que os produtores e técnicos estão tendo para o envio de material para diagnóstico de rotina, principalmente pela possibilidade de despacho de amostras pelas companhias aéreas e outras empresas transportadoras. O novo endereço do laboratório é: AQUAVET – Laboratório de Doenças de Animais Aquáticos. Departamento de Medicina Veterinária Preventiva, Escola de Veterinária, Universidade Federal de Minas Gerais. Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627, São Francisco, Belo Horizonte, MG. CEP 31270-010. Telefone: 31 3409-2126.Os trabalhos desenvolvidos no AQUAVET são financiados pela FAPEMIG, pelo CNPq e por Furnas Centrais Elétricas.