O termo kinguio talvez crie, para a maioria dos leitores, a expectativa de se tratar de uma nova ou rara espécie de peixe ornamental, mas é apenas uma denominação mais apropriada para o bem conhecido peixe “japonês” ou “peixe dourado”, conhecido pela ciência como Carassius auratus. Esta é certamente a espécie mais popular dentre os aquaristas, apesar de muitos não a apreciarem pelo seu hábito de arrancar as plantas do aquário, além daqueles que vêem as mutações que compõem as diversas variedades desta espécie, como aberrações. Mas o fato é que certamente quase todos já possuíram ao menos um exemplar deste peixe.
Por :
Manuel Vazquez Vidal Junior
Universidade Norte Fluminense
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O kinguio foi uma das primeiras espécies de peixes ornamentais cultivadas no Brasil, possivelmente introduzido em 1926 por Sigeiti Takase, imigrante de origem japonesa, filho de um comerciante de peixes ornamentais em seu país de origem e, que ao aqui chegar, trouxe consigo algumas espécies asiáticas, sobretudo ciprinideos e anabantideos, que passou a cultivar no Rio de Janeiro. Mas a históriado kinguio é muito mais antiga e se confunde com a própria história da aqüicultura e sobretudo da produção de peixes ornamentais.
Originário da China, o kinguio já era citado em textos de Po Wu Chin, durante a disnatia Chun (265-419 d.C.) que citavam o surgimento de animais dourados, que contrastavam com o padrão selvagem, cinza-esverdeado e com corpo fusiforme. Alguns séculos depois o imperador Zhao Gou ordenou que fossem trazidos kinguios de todas as partes da China para comporem seu jardim. Os diversos cruzamentos ocorridos entre estas populações deram origem a exemplares com as cores vermelha e branca.
Na dinastia Ming (1368-1644), surge a criação do kinguio em aquários, o que possibilitou a seleção de linhagens semelhantes aos atuais red cap e telescópios, que não são adequadas ao cultivo em tanques.
O kinguio só chegou ao Japão em 1571, sendo as primeiras criações comerciais datadas da primeira década de 1700. Nesta mesma época alguns exemplares foram levados do Japão para Portugal e depois para a Inglaterra e França, onde o Rei Luiz XV logo se tornou um aficionado.
Dada a variedade de formas e cores desta espécie é até estranho que apenas em 1590 tenham surgido os espécimes com cauda dupla. Nesta mesma época foi publicado o livro “Ensaio sobre kinguios”, escrito na China em 1596 por Chang Chi En-Te, com o título original de “Chu Sha Yu P’U”, que traduzido significa “Livro dos Peixes Vermelhos”.
No Japão também foram desenvolvidas novas linhagens, inclusive aquela que se tornaria a mais popular dentre todas, o oranda.
Atualmente encontramos diversas outras variedades, como o celestial (ou mira ceú), o riukin, o pompom, o cabeça-de-leão e exemplares com escamas peroladas (Figuras 4 a 8).
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Em Singapura o kinguio representa de 7 a 11% do volume total exportado, mas países como os EUA já se destacam na produção desta espécie, além dos tradicionais Japão e China. No Brasil a produção desta espécie não é exportada e apenas abastece o mercado interno. Os produtores estão espalhados em diversas cidades, sobretudo no Estado de São Paulo, mas cabe destacar que em Cachoeiras de Macacu (RJ) existe uma criação modelo desta espécie. É difícil estimar a quantidade de kinguios produzida no Brasil, mas certamente é superior a cinco milhões de indivíduos por ano.
A maior parte dos produtores brasileiros cria kinguios que poderíamos chamar de SRD (sem raça definida) ou pé-duro. Não são similares aos exemplares selvagens e já apresentam o corpo arredondado ou truncado. É desejável possuir nadadeira caudal dupla ou em véu, mas ainda encontramos no mercado exemplares com caudas simples. Estes animais são vendidos pelos produtores por R$ 1,50 a 3,00/cada, enquanto os animais de variedades puras são comercializados por valores que variam de R$ 12,00 a 40,00/cada. Kinguios com excelente padrão racial atingem valores ainda maiores, mas não possuem um bom mercado, por isso é importante que os produtores comecem a formar associações visando exportar estes animais. Infelizmente os produtores que possuem animais com bom padrão são muito fechados, e é bom lembrar que não temos animais de ponta, mas que podem ser exportados e apenas não se sairiam bem em campeonatos.
Características para o cultivo
O kinguio pode atingir em lagos, até 30 cm de comprimento, mas em aquários raramente ultrapassa os 15 cm. Juntamente com a carpa, é uma das espécies com maior faixa de conforto térmico, podendo ser criada em águas entre 4 e 28ºC, porém cabe ressaltar que não toleram mudanças bruscas de temperatura. Quando esta ultrapassa 26ºC, a ocorrência de reprodução é rara.
Esta espécie prefere águas com pH ligeiramente alcalino (7,2 a 7,6) mas são cultivadas com sucesso em pH entre 6,5 e 8,0, portanto devemos dar especial atenção a este parâmetro, uma vez que a maioria dos solos brasileiros são ácidos, necessitando periodicamente de correção por meio de calagem.
Apesar das exigências nutricionais desta espécie serem bem conhecidas, não dispomos no Brasil de rações comerciais específicas. Os produtores adotam rações para peixes de corte e apenas alguns fazem a ração na propriedade, utilizando tais conhecimentos.
O tipo de tanque e o sistema de cultivo irá depender da variedade cultivada. Para o kinguio SRD o sistema de produção é muito semelhante ao que convencionamos chamar de semi-intensivo para peixes de corte. São utilizados tanques escavados, com área entre 20 e 400 m2 e profundidade máxima de 1,2 m. Alguns produtores optam por tanques ainda maiores, mas nestes a despesca se torna mais trabalhosa e lenta, o que pode causar elevada mortalidade pois a argila em suspensão no processo de despesca colmata as brânquias dos peixes. Além disso, a captura de um volume grande de peixes de uma só vez, causa lesões nos peixes devido ao esmagamento do cardume contra a rede. O ideal na despesca é juntar os animais com a rede de arrasto e retirá-los do tanque com puçás.
Os tanques neste sistema recebem adubações iniciais e de manutenção, sendo os peixes arraçoados com ração extrusada com 36% de PB. Devido a sua coloração, estes peixes são facilmente localizados por aves piscívoras, o que, aliado a sua baixa velocidade de natação, os tornam presas fáceis. Portanto é recomendado que os tanques possuam uma tela de proteção.
Variedades como o riukin e o oranda também podem ser cultivadas em tanques externos, mas algumas de suas características não se desenvolvem adequadamente. Como exemplo, podemos citar a protuberância encontrada sobre o crânio do oranda, comumente denominada quepe ou cap. Para que ela tenha bom tamanho é necessário que o peixe seja cultivado em água clara, com baixa quantidade de algas e de argila. Não se sabe ao certo o motivo pelo qual essas variedades não se desenvolvem em águas eutrofisadas. Outras variedades, como o olho-de-bolha, celestial, pompom e cabeça-de-leão, nunca devem ser cultivadas em tanques de terra e, preferencialmente, devem ser mantidas em tanques internos (em uma estufa) que possuam paredes lisas, evitando variações de temperatura e ferimentos, o que são comuns nestas variedades.
Seja no sistema com ou sem recirculação de água, é aconselhável utilizar além da ração para peixes de corte (com 36 a 42% de PB), alimentos vivos ou frescos. Podemos citar as daphnias, o tubifex e vegetais frescos, estes últimos são importantes também por serem fontes de pigmentos carotenóides e caso não estejam presentes na dieta, o produtor deve adicionar tais pigmentos à ração comercial ou fazer uma pasta misturando as fontes de carotenóides e alimentos frescos e secos.
Reprodução natural
No Brasil a reprodução desta espécie começa em julho ou agosto e, após a primeira desova, a fêmea pode voltar a desovar após 20 dias. Entretanto é preciso que a temperatura se mantenha amena. O ideal é manter os reprodutores em estufas sombreadas onde promove-se um período com temperatura abaixo de 20ºC, fundamental para iniciar a maturação ovocitária, e posteriormente os animais são mantidos a 24ºC, possibilitando uma longa estação reprodutiva, que pode se estender por até oito meses consecutivos.
O processo mais simples para obter a desova desta espécie consiste em criar os peixes separados por sexo e, em agosto, juntá-los em um tanque com aguapés ou outras plantas flutuantes cujas raízes servirão de substrato para os ovos aderentes. Após a desova, as plantas com os ovos devem ser levadas o mais rapidamente possível para um tanque recém adubado. Este sistema só é adequado para peixes SRD.
Quando possuímos exemplares de boa linhagem, precisamos aumentar a pressão de seleção e o controle sobre os cruzamentos, neste caso podemos usar um método semelhante ao mencionado anteriormente, porém em caixas ou tanques pequenos onde acasalamos apenas um casal, um pequeno lote com características semelhantes. Neste caso torna-se ainda mais importante a determinação do sexo e do momento propício para a desova. Os machos costumam verter sêmen com facilidade após leve compressão abdominal, também neles observamos pontos brancos e ásperos no opérculo. As fêmeas que possuem uma papila genital mais arredondada, ficam com o abdome flácido e quando a desova é iminente podemos observar, os ovócitos na papila e caso façamos uma compressão é possível a coleta dos mesmos.
Estas reproduções controladas podem utilizar o mesmo tipo de substrato para a desova. As larvas do kinguio eclodem após 36 a 50 horas de incubação e seu saco vitelínico permite que fiquem mais 48 horas sem a necessidade de serem alimentados. Após esta fase, já como pós-larvas, elas devem ser alimentadas com alimentos vivos, mas podem receber também ração finamente moída, pois já produzem enzimas para digerir o alimento.
A reprodução artificial
Apesar do kinguio ser uma espécie que desova em águas paradas, dominar o processo de reprodução artificial desta espécie foi uma ferramenta importante no desenvolvimento de novas linhagens, uma vez que isso permitiu aumentar o número de descendentes dos animais com características excepcionais.
A reprodução artificial do kinguio é relativamente simples. Para tal podemos utilizar diversas substâncias indutoras da desova, como por exemplo, o extrato de hipófise, que é a mais utilizada no Brasil; o HCG, que ainda é pouco utilizado apesar da sua eficiência e o LHRH, que deve ser associado a um inibidor de dopamina, sendo este último o mais utilizado pelos criadores asiáticos.
No caso do uso de hipófise, devemos fazer duas aplicações. A primeira é chamada de dose preparatória e sua concentração é de 0,5 mg de hipófise por kg de peso da fêmea e após 10h aplicamos a segunda dose, chamada de dose decisiva, cuja concentração é de 2 a 3 mg de hipófise por kg de peso para a fêmea, ocasião na qual o macho receberá uma única dose, contendo 0,5 mg de hipófise por kg de peso.
Cada hipófise pesa aproximadamente 3 mg, mas podemos encontrar hipófises no mercado com uma grande variação de peso, desde 1 a 5 mg. Como os kinguios utilizados pesam menos de 100g, é preciso dissolver a hipófise em soro fisiológico e utilizar apenas a fração que corresponde à dose recomendada. Para evitar o desperdício de hipófises, diversos animais são induzidos simultaneamente.
Aqueles que trabalham com produção de alevinos de peixes de corte devem ter percebido que a dose decisiva utilizada para os kinguios é menor que a utilizada nos peixes de corte, como a própria carpa. Isto se dá devido ao fato do kinguio ser um peixe sincrônico em mais de dois grupos, ou seja, no ovário da fêmea diversos lotes de ovócitos estão em desenvolvimento. Cada um em uma fase de maturação, para que sejam desovados periodicamente. Doses elevadas promovem a eliminação de ovócitos imaturos, que seriam desovados em um próximo ciclo. Outra diferença importante é que após 20 a 40 dias as fêmeas podem ser novamente hipofisadas.
Por serem animais que desovam em água parada, é importante que após a primeira dose, os machos já fiquem com as fêmeas, pois algumas, as que haviam atingido maior maturação ovocitária, podem vir a desovar apenas com a dose preparatória.
As fêmeas pouco antes da ovulação passam a nadar em carrossel e quando atingimos 240 a 280 horas-grau (HG) após a segunda dose, ocorrem as desovas. Nesta espécie não é necessário suturar a papila genital, mas devemos capturar a fêmea com cuidado pois, após a ovulação, ela expele os ovócitos com facilidade.
Os ovócitos e espermatozóides devem ser coletados sem contato com a água e, para tal, é importante secar bem os animais antes de fazer a extrusão. Após a mistura do sêmen com os ovócitos, devemos utilizar uma solução composta por 40g de sal e 30g de uréia dissolvidos em 10 L de água. Esta solução permite que ocorra a fertilização sem ocorrer aderência entre os ovos.
Após dois ou três minutos, já tendo ocorrido a fertilização, devemos lavar várias vezes a massa de ovos com uma solução composta por 40g de sal e 160 g de uréia dissolvidos em 10 L de água. Essa solução irá eliminar a aderência dos ovos, que devem ser incubados em incubadoras cilíndrico cônicas com baixo fluxo de água, ou o suficiente para mantê-los no terço inferior da mesma.
Como os animais adultos geralmente possuem menos de 10 cm de comprimento, o processo de extrusão requer habilidade manual e mesmo assim os peixes ficam muito estressados. Por este motivo é cada vez mais comum proceder a hipofisação e deixar a desova ocorrer naturalmente. O substrato onde os ovos ficam aderidos é então levado para incubadoras semelhantes a cochos. Um bom substrato é a corda de nylon desfiada.
Com quatro meses de vida, ou 3 a 4cm, o kinguio já pode ser comercializado, mas o ideal é vender animais com o tamanho médio de 5 a 8 cm, pois já expressam todas suas características e por isso atingem maior valor no mercado.
Qualidade e mercado
O cultivo de kinguios de bom padrão é uma atividade que pode ser realizada mesmo em ambientes urbanos e com bons rendimentos, uma vez que são animais com alto valor agregado e, mesmo pequenos cultivos podem ser lucrativos. Um micro produtor com 20 fêmeas de boa linhagem, pode produzir mais de cinco mil exemplares por ano e, para isso, necessitará uma área de engorda inferior a 300 m2.
O mercado está saturado de kinguios SRD e ávido por animais de boa linhagem. Um indicativo desse comportamento é que as importações desta espécie, por lojistas e atacadistas, vêm aumentando nos últimos anos. Os animais de raça mais vendidos são o oranda e o telescópio, mas a procura por raças mais exóticas, como o cabeça-de-leão e o pompom, também está aumentando.