Invasoras, Casuais ou Naturalizadas? Buscando uma classificação científica para as tilápias

A sustentabilidade abrange não somente questões ambientais, mas também econômicas e sociais, incluindo ações de governança. A tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus, Linnaeus 1757), uma espécie de peixe onívora com tendência a herbívora, é a espécie de peixe mais difundida no mundo, tendo sido introduzida para aliviar a fome e gerar renda para milhões de pessoas em países pobres e em desenvolvimento. No Brasil, as espécies não nativas, como a tilápia, têm contribuído significativamente com a segurança alimentar e a geração de renda e empregos, tornando a tilapicultura um dos pilares do agronegócio brasileiro. Atualmente, dependendo da fonte, a tilápia representa cerca de 60-82% do total dos peixes produzidos no Brasil, estando presente em quase todas as bacias hidrográficas há mais de meio século. É consenso que a cautela se faz necessária ao se introduzir espécies exóticas em novos ecossistemas, pois o potencial predador pode causar danos irreversíveis à fauna nativa. Porém, apesar da ausência de estatísticas pesqueiras, bem como da inexistência de registros científicos que comprovem impactos ambientais negativos atribuídos à tilápia, a espécie vem sendo classificada pelo Estado brasileiro como espécie exótica invasora, com potencial de se tornar praga. No entanto, não há evidências científicas que comprovem que a tilápia cause danos a espécies nativas, prejuízos econômicos ou ambientais. 


Sergio Zimmermann
sergio@sergiozimmermann.com
Por: Sergio Zimmermann
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Renata M. Barroso Bertolini
renata.barroso@agro.gov.br
Renata M. Barroso Bertolini
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Bruno M. Queiroz
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Bernardo Baldisserotto
bernardo.baldisserotto@ufsm.br
Bernardo Baldisserotto
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Danilo Streit
danilo.streit@ufrgs.br
Danilo Streit
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Este artigo é uma revisão crítica da literatura que busca uma classificação mais adequada para a tilápia no Brasil, provocando o debate, trazendo à luz informações científicas para discussão da atual insegurança jurídica em alguns estados brasileiros e, com isso, promover a segurança alimentar. Sendo o conjunto de espécies de peixe mais cultivado no mundo e no Brasil devido às suas aptidões de mercado, características zootécnicas favoráveis e capacidade de se adaptar a sistemas de cultivo sem efluentes, a tilápia é uma opção extremamente promissora para a aquacultura regenerativa, não podendo mais continuar a ser marginalizada sob qualquer aspecto legal ou pretensamente legal


Por que as Tilápias vêm predominando?

A indústria de proteínas animais é baseada em praticamente uma espécie por categoria, a saber: aves, suínos, bovinos, caprinos e ovinos. Na categoria de peixes, as carpas são as mais cultivadas no mundo devido à enorme produção chinesa, que é quase toda de subsistência. As várias tilápias do gênero Oreochromis (diversos híbridos) compõem a categoria de peixes mais cultivados e comercializados no resto do mundo, com crescimentos anuais de dois dígitos, de acordo com a FAO (2021). As razões para esse cenário são inúmeras, como boas aptidões de mercado e diversas características zootécnicas favoráveis, além de ser uma espécie extremamente promissora para a aquacultura regenerativa (sequestro de carbono) e a adaptabilidade à bioeconomia circular em sistemas de cultivo sem efluentes. Segundo a mesma FAO, a tilápia nilótica (O. niloticus) passou a ser mais difundida nos anos 60 a 80 devido ao seu maior crescimento em altas densidades, prolificidade e reprodução mais tardia (Lazard, 1984), quando comparada às demais espécies de tilápia. Originária da África, a tilápia é exótica para a maioria dos países produtores, mas esta condição não pode ser impedimento para sua cultura comercial.

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No Brasil, entre as diferentes categorias de animais e plantas, estima-se a ocorrência de pelo menos 1.214 espécies exóticas estabelecidas, das quais 460 (38%) são reconhecidas como espécies invasoras (Adelino et al., 2021). A tilápia nilótica, introduzida no país no início dos anos 70, não foi destacada neste estudo econômico. Após várias décadas de tentativas de adaptação de dezenas de espécies nativas para o cultivo, nossa piscicultura acabou se concentrando em poucas espécies. A maior aceitação pelo mercado consumidor associada aos menores custos de produção (sendo zootecnicamente mais eficientes por tolerar rações mais baratas, possuir hábito alimentar onívoro e crescer rapidamente em elevadas densidades), favoreceu a economia de escala tanto na criação como na comercialização da tilápia (FAO, 2022). Dessa forma, pode-se dizer que, mesmo com toda a diversidade ictiológica brasileira, nossa piscicultura está baseada em poucas espécies, praticamente todas não nativas na maioria das bacias hidrográficas, assim como ocorre com as demais espécies animais que possuem desenvolvimento zootécnico. A Figura 1 e a Tabela 1 ilustram bem essa situação, em que cerca de 82% dos peixes e camarões produzidos no Brasil são não nativos, e o grupo dos nativos mais cultivados são os tambaquis e seus híbridos sintéticos (tambatinga e tambacu), com cerca de 12%. Uma das principais razões para a maior parte das espécies nativas não serem tão amplamente cultivadas é a falta de programas de melhoramento genético de longa duração. Isso baixaria seus elevados custos de produção (e preços no mercado), principalmente resultantes de hábitos alimentares carnívoros ou onívoros com tendência a carnívoros. Logo, poderiam ser melhorados/adaptados às dietas com maior concentração de ingredientes vegetais e, por consequência, mais acessíveis, como nas espécies não nativas.

Figura 1 – Previsões da Aquicultura Brasileira para o ano de 2022 | Fonte: Pesquisa de Campo para a GAA (2022)
Figura 1 – Previsões da Aquicultura Brasileira para o ano de 2022 | Fonte: Pesquisa de Campo para a GAA (2022)
Tabela 1 – Compilação de dados do IBGE (2019), produtores, cooperativas, Peixe-BR (2022), ABCC (2022) e Associações regionais de piscicultura
Tabela 1 – Compilação de dados do IBGE (2019), produtores, cooperativas, Peixe-BR (2022), ABCC (2022) e Associações regionais de piscicultura

Anatomia x Favorecimento Zootécnico

As tilápias, assim como várias espécies nativas sul-americanas onívoras, incluindo o grupo dos redondos e seus híbridos (tambatinga e tambacu), que são os mais cultivados, apresentam características zootécnicas próprias muito favoráveis ao cultivo, tais como: a) baixa demanda de proteína bruta e outros nutrientes de custo elevado nas dietas, o que é típico nas espécies herbívoras filtradoras; b) elevadas taxas de sobrevivência, seja pela plasticidade e resistência a muitas doenças, seja pelo baixo nível de canibalismo nas diferentes fases do desenvolvimento pós-metamorfose; e c) tolerância às elevadas densidades dos cultivos intensivos. 

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Anatomicamente, a estrutura da cavidade bucofaringiana deve influenciar não apenas nos hábitos alimentares, como também na tolerância às elevadas densidades de cultivo (Rodrigues et al., 2004). Neste caso, este segmento do aparelho digestório está intrinsecamente relacionado com a seleção, captura, direcionamento e preparo do alimento a ser deglutido (Prejs, 1981). Na grande maioria das espécies cultivadas em sistemas mais intensivos e econômicos, a proximidade dos peixes (elevada densidade animal/área) aumenta a suscetibilidade de suas extremidades (cauda, nadadeiras e cabeça) serem lesadas por outros peixes, estimulando um comportamento de predação/mutilação. Este é um dos principais fatores que desafia a sustentabilidade e o bem-estar animal nos cultivos, mesmo em espécies onívoras. No caso da tilápia, a ausência de dentição protuberante é uma característica anatômica desejável, principalmente na fase de crescimento em elevadas densidades. 

A grande variação nos hábitos e tendências alimentares influencia na estrutura do aparelho digestório com diversas adaptações, tais como posição da boca, estrutura dos lábios, presença de barbilhões, tipo das dentições oral e faringiana, estrutura do filtro branquial, padrão da mucosa que reveste a cavidade bucofaringiana e o tubo digestório, forma do estômago, comprimento do intestino e a presença de cecos pilóricos. Tais especificidades acabam influenciando na demanda de nutrientes, em especial na fração proteica (custo das rações). Como alternativa ao sucesso das tilápias, uma avaliação anatomofisiológica superficial poderia apontar diversas espécies sul-americanas como mais favoráveis ao cultivo com baixos custos de ração: piauçu, mapará, matrinxã, curimatã, piracanjuba/jatuarana, piava/piapara, piaus, pirapitinga/caranha. No entanto, existem ainda muitos outros gargalos zootécnicos que precisam ser trabalhados para viabilizar a produção comercial dessas espécies, além dos desafios mercadológicos de cada uma. 

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Invasora ou maior capacidade adaptativa à poluição? 

As tilápias nilóticas e seus híbridos são altamente adaptadas a ambientes tropicais, subtropicais e temperados (El-Sayed e Fitzsimmons, 2023). São caracterizadas pelo rápido crescimento, tolerância a condições ambientais extremas (como temperaturas, salinidades, pHs e baixos níveis de oxigênio dissolvido), pela alta resistência ao estresse e doenças, plasticidade trófica e alimentação em baixos níveis tróficos, além da sua enorme capacidade em se reproduzir em cativeiro (El-Sayed, 2020; Assefa e Gatahun, 2015; Bwanika et al., 2004), mostrando-se uma candidata ideal para a aquicultura em todo o mundo. El-Sayed e Fitzsimmons (2023) citam pelo menos 114 introduções de tilápia do Nilo mundo afora em levantamentos conduzidos até meados da década passada por Deines et al. (2016). Como resultado, nos últimos 30 anos, mundialmente a produção de tilápia também vem se multiplicando em ritmo acelerado, passando de um milhão de toneladas anuais na virada do século para os atuais 7 milhões de toneladas. 

As tilápias são resistentes e capazes de prosperar em alguns ambientes poluídos nos quais espécies nativas não se adaptaram (El-Sayed e Fitzsimmons, 2023). Muitos relatos de invasões de tilápia falham ao não descrever as alterações na qualidade da água, mudanças climáticas e colocação de represas que alteram as temperaturas e taxas de fluxo da água, ou a cointrodução de mais espécies predadoras não nativas que acompanharam a introdução de tilápia em uma bacia hidrográfica específica (Deines et al., 2016; Chase, 2019; Fletcher, 2021; Gozlan, 2008; Qiuming, 2004). Há também relatos de que, em ecossistemas relativamente intocados, as introduções de tilápia do Nilo não levaram a efeitos deletérios, e que o peixe nem mesmo hibridiza com ciclídeos indígenas (Kopf, et al., 2017).

Essa grande plasticidade adaptativa atrai aquicultores pelo fato de suportar, por exemplo, eventuais baixos níveis de oxigênio dissolvido (sobrevivendo a 1,1 mg/L e concentração letal de 0,64 mg/L), ainda que com crescimentos reduzidos (Li et al., 2018). Mesmo que a tilápia sobreviva em águas de baixa qualidade, essa não é a única explicação para a sua ampla presença em diversos corpos hídricos do Rio Grande do Sul. Chama atenção a predominância da tilápia nesses ambientes, já que certas espécies nativas, como a traíra (0,4-0,5 mg/L), curimba (0,3-0,5 mg/L) e jundiá-Rhamdia (0,52 mg/L), são tão ou mais resistentes que a tilápia aos baixos níveis de oxigênio dissolvido. Ocorre que outros fatores, todos antrópicos, influenciam o equilíbrio ambiental, afetando principalmente as espécies nativas, como sobrepesca; alterações do curso hídrico (por barragens, por exemplo); degradação dos rios, riachos e córregos; poluição urbana e industrial. O somatório desses fatores afeta enormemente a sobrevivência de espécies nativas, sendo as de estratégia reprodutiva migratória as mais afetadas, por terem uma dinâmica de recuperação populacional muito lenta. Dessa forma, a tilápia encontra cada vez mais ambientes favoráveis ao seu desenvolvimento, e por ter reprodução precoce, proteção parental e desova parcelada realizada em águas lênticas, ocupou os espaços naturais numa velocidade maior do que a capacidade de seus predadores em recuperar suas populações.

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Um exemplo na cidade de Porto Alegre é o Arroio do Dilúvio, rio que corta a capital gaúcha. Infelizmente, o arroio é reconhecido, há várias décadas, pela sua intensa poluição (assim como muitos outros córregos, riachos e arroios no país), mas que serve de refúgio para as tilápias ali encontradas. A poluição é determinante para a ausência de predadores (a maioria dos nativos carnívoros), favorecendo a constante presença das tilápias nesses ambientes. Erroneamente, porém, alguns ambientalistas utilizam a presença de tilápias nesses ambientes poluídos, em combinação com a ausência de espécies nativas, para argumentar que as tilápias exterminaram as espécies locais, sem a devida comprovação com estudos científicos que demonstrem essas afirmativas.

Em paralelo ao sucesso produtivo e mercadológico de espécies não nativas, surgiram movimentos ambientais em diversos países contra o cultivo e a disseminação de espécies exóticas, em especial de tilápias. Esses movimentos chamam atenção não somente por irem contra as principais organizações ambientais, como a WWF, GSA, Greenpeace, Naturland, EDO (Environmental Defense Fund; Eco-friendly Best Fish Choices), FAO, entre outras promotoras da sustentabilidade do cultivo e consumo dessa espécie, uma vez que a tilápia é vista como importante fonte herbívora contra a insegurança alimentar, mas também porque agora difundem ampla e erroneamente que a tilápia é uma ameaça ao meio ambiente, competindo com as espécies nativas por recursos, e a culpam pelo desequilíbrio ecológico, sem citar a vulnerabilidade das nativas às terríveis ações antrópicas nos ambientes naturais nas últimas décadas. 

Legislação das EEI no Brasil 

Apesar de o primeiro diagnóstico nacional sobre espécies exóticas invasoras (EEI) ter sido realizado apenas em 2005 pelo MMA, ainda hoje não há uma lista federal oficial de EEI que inclua a tilápia. Alguns estados brasileiros, a partir de 2010, se anteciparam, colocando a espécie em suas listas estaduais, como é o caso do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Sendo o Brasil signatário de tratados internacionais para controle de espécies exóticas invasoras e tendo publicado a Lei Federal nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, conhecida como Lei de Crimes Ambientais, que em síntese considera que“todas as ações que possam disseminar doenças, pragas ou espécies que possam causar dano à agricultura, à pecuária, à fauna, à flora ou aos ecossistemas sejam passíveis de punição” (Art. 61), evidencia-se assim a responsabilidade de incluir uma espécie de interesse produtivo e com mercado consolidado na lista de EEI. Esse foi o caso da tilápia, que passou a fazer parte da lista das EEIs justamente quando o país passou a ser um importante produtor mundial (4º maior produtor mundial da espécie) e a espécie adquiriu enorme importância socioeconômica.

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Ainda hoje, a única orientação existente no Brasil para o manejo das EEIs refere-se às Unidades de Conservação Federais (MMA, 2019). Já a Estratégia Nacional para Espécies Exóticas Invasoras, aprovada pela Resolução Conabio nº 07, de 29 de maio de 2018, foca suas ações nas “espécies que ameaçam ou impactam a diversidade biológica e buscam uma visão integrada com outros setores afetados, em função de prejuízos econômicos, questões de saúde e impactos sociais e culturais”. Não é o caso da tilápia, que revolucionou a questão da segurança alimentar de sertanejos (Barroso et al., 2018), trouxe renda ao produtor rural (Barroso et al., 2019, Sabbag et al., 2021 e Zimmerman et al., 2021) e vem transformando positivamente a piscicultura brasileira e a oferta de pescado para consumo humano em taxas anuais próximas aos 10% (Peixe-BR, 2021).

No entanto, muitos documentos e publicações técnicas brasileiras (Zalba & Ziller, 2007; Almeida et al., 2011; Latini et al., 2016) usam a interpretação de que todas as espécies não nativas que expandem sua distribuição para novos habitats são uma ameaça. O tom imperativo desses documentos desconsidera o fato de uma espécie que se expande geograficamente não ser necessariamente uma ameaça ao meio ambiente ou à saúde humana. Esse equívoco e a ausência de critérios claros para a construção da lista de EEI são um problema no Brasil, uma vez que qualquer incidente com EEI pode ser classificado como crime ambiental.

A Estratégia Nacional Brasileira para as EEIs (Resolução Conabio nº 07, de 29 de maio de 2018), concentra suas ações em “espécies que ameaçam ou impactam a diversidade biológica” e busca uma visão integrada com outros setores possivelmente afetados pelas EEIs devido a perdas econômicas, problemas de saúde e impactos sociais e culturais. O documento contém resumidamente toda a base legal, objetivo da estratégia nacional, listando as ações como um plano, sem maiores detalhes. A Portaria nº 3 (Portaria Brasileira), de 16 de agosto de 2018, estabelece o Plano de Implementação da Estratégia Nacional para as EEIs, que exige a instalação de pesquisa científica no processo, mas novamente sem aprofundar as informações (l1nq.com/FU76V).

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Muitos documentos sobre as EEIs reconhecem o papel de algumas dessas espécies na geração de renda e emprego e na existência de um mercado estabelecido. Avaliando a regulamentação internacional, observa-se uma clara diferença de entendimento entre os países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento. Na União Europeia (UE) e nos Estados Unidos (EUA), os critérios para definir as EEIs e o tratamento dado ao assunto incluem soluções mais holísticas, considerando avaliações sistemáticas dos impactos ambientais, sociais, econômicos, tendo cautela com as decisões imprudentes. Já países como o Brasil, Filipinas e Quênia são exemplos de onde se valoriza mais o meio ambiente do que o ganho social ou econômico, sendo que a partir desse entendimento se deixa de determinar critérios importantes para definir as EEIs, para aplicar a pesquisa/referências científicas, para fornecer avaliação de risco e plano de gestão com aplicação coerente para garantir o cumprimento. Ambientalistas argumentam que as EEIs geram benefícios apenas para um pequeno grupo social privado, mas as perdas associadas ao processo de invasão são socializadas e, muitas vezes, vistas como problemas a serem resolvidos pelo governo com recursos públicos. Esse argumento mostra a necessidade de um conhecimento mais profundo de cada caso e deve acompanhar os esforços da UE ou dos EUA para definir e orientar as decisões que fornecem subsídios para as áreas onde os julgamentos da sociedade são necessários para implementar políticas públicas eficazes.

Questionamentos e conflitos: as controvérsias de argumentos ambientais

O melhor indicador de risco de uma espécie invasora seria a referência de antecedentes invasores em outras regiões do mundo (Zalba & Ziller, 2007). Esse é um conceito completamente equivocado, uma vez que as espécies podem responder de forma distinta em diferentes ambientes, sendo uma ameaça em algumas situações, mas não em outras. Evidentemente, existe uma lacuna de diretrizes objetivas para definir se uma espécie é nociva a um ambiente específico, bem como recomendações claras quando a EEI for considerada tão difundida que é impossível estabelecer uma solução de erradicação. 

A demora para publicar uma regulamentação mais detalhada e clara no Brasil aumenta ainda mais os questionamentos e o conflito nesta área, não favorecendo o meio ambiente, uma vez que muitas espécies não nativas são de grande interesse econômico e acabam sendo ilegalmente introduzidas. Na aquicultura, por exemplo, a ausência de critérios vem resultando em regras mais cautelosas na piscicultura, estreitando as possibilidades produtivas nem sempre condizentes com as demandas do mercado e, consequentemente, mal aceitas/não respeitadas pelos produtores. Um exemplo são as sugestões de Zalba & Ziller (2007): 1) Todo projeto de piscicultura de espécies exóticas deve ter um plano de prevenção de evasão e um plano de contingência caso ocorram; 2) Os produtores devem cultivar espécies nativas; 3) Não devem ser aprovados novos projetos que considerem a introdução de peixes exóticos ou outras espécies aquáticas, uma vez que o potencial de invasão é imenso e, uma vez que ocorre a invasão, a erradicação é praticamente impossível. No entanto, os autores não consideraram: 1) Fuga não significa invasão, e invasão nem sempre é uma ameaça, embora a prevenção da evasão já esteja prevista na Lei de Licenciamento Ambiental Brasileiro para a atividade, independentemente da espécie ser nativa ou não; 2) Um equívoco frequentemente repetido por autores preocupados com o meio ambiente é que o cultivo de espécies nativas pode ser uma solução complexa, pois nem sempre é economicamente viável e nem sempre tão seguro ao meio ambiente e à biodiversidade como sugerido (espécies nativas em elevadas densidades de cultivo podem significar multiplicação de patógenos nativos e consequências ambientais potencialmente nefastas); por fim, o anacronismo do item 3 evidencia a necessidade de cautela e conhecimento técnico atual para usar como sugestão técnica para qualquer documento deliberativo. Especificamente sobre o item 3, atualmente as tecnologias baseadas na Bioeconomia Circular estão disponíveis para a aquicultura e vêm ocorrendo até mesmo em países ricos em recursos hídricos como o Brasil. Logo, esses sistemas são biosseguros e podem impedir com eficiência que as espécies cultivadas – nativas ou exóticas – e seus patógenos escapem para novos habitats.

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Diversas espécies de tilápias foram introduzidas no Brasil para estimular seu cultivo nos últimos 60 anos e multiplicaram-se livremente nos reservatórios e açudes (Schulter e Vieira Filho, 2017). Os primeiros relatos confiáveis, de 1992, indicavam que os pescadores capturavam cerca de 10 mil toneladas/ano (aproximadamente 5% do total de capturas de peixes continentais) (MMA, 1995a). Apesar do aumento da produção de tilápias, as capturas pelos pescadores até 2011 (último ano com dados disponíveis) permaneceram na mesma faixa percentual (5%) do ano de 1992 (MMA, 1995a,b,c; IBAMA, 1997a,b; 1998, 2000a,b; 2001; 2003; 2004a,b; 2005; 2007a,b; 2008; MPA, 2010; 2012; IBGE, 2012). Estudos recentes indicaram que a tilapia do Nilo representa 35,1% dos registros de espécies exóticas no Brasil (Bertaco e  Azevedo, 2023).

Uma análise de espécies exóticas em rios da Região Sudeste não indicou impactos devido à presença da tilápia do Nilo (Bueno et al., 2021). No sul do Brasil, nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a tilápia do Nilo é originada principalmente de fugas de pisciculturas, uma vez que larvas nunca foram capturadas na Lagoa dos Patos e na bacia do Guaíba (Fontoura et al., 2016). Em estudo ao longo de 10 anos em reservatório no rio Uruguai, não foi constatada a possibilidade de quaisquer danos causados pela ocorrência de tilápias (Schork e Zaniboni-Filho, 2017). No entanto, há relatos da presença de ninhos e cuidados com os filhotes pelos pais durante os meses de verão em um córrego poluído na cidade de Porto Alegre, capital do estado do RS (Bertaco e Azevedo, 2023). Vale a pena registrar que o primeiro autor do presente artigo, ainda no início dos anos 80, realizou diversas coletas de tilápias nilóticas no Arroio do Dilúvio (que margeava o Setor de Aquicultura da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). O objetivo do pesquisador era comparar o desempenho zootécnico do material oriundo do meio ambiente versus tilápias comercialmente cultivadas nos açudes da Empresa Avipal. No estado do Paraná, maior produtor de tilápia do país, houve diversos relatos da presença dessa espécie em rios da região oeste, a partir de fugas de pisciculturas (Ribeiro, Gubiani & Cunico, 2018; Forneck et al., 2021). Uma análise de avaliação de risco para córregos de uma bacia hidrográfica nessa região indicou a tilápia do Nilo como de alto risco de invasão (Camargo et al., 2022). Resenhas sobre o assunto apontaram sua presença em rios e reservatórios da região Neotropical (que abrange outros países além do Brasil), com destaque para a piscicultura paranaense como vetor de introdução naquele estado (Daga et al., 2016; Gubiani et al., 2018; Latini et al., 2021; Forneck et al., 2021). Essas revisões argumentaram que a tilápia do Nilo está estabelecida na região, e fêmeas reprodutivas, alevinos e juvenis foram encontrados em riachos com presença de instalações de aquicultura. Mesmo com a predominância de machos com sexo revertido, foi observada uma relação macho/fêmea de 0,76:1,0 (Forneck et al., 2021). No entanto, os mesmos autores relataram que em riachos dessa região sem instalações de aquicultura não foi encontrada tilápia do Nilo (Forneck et al., 2021), e um estudo recente em um rio e lagoa adjacente no oeste do Paraná não encontrou larvas de tilápia do Nilo (Melo-Silva et al., 2022). 

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Outro detalhe a ser observado sobre a região oeste do Paraná refere-se à poluição da maioria dos rios por coliformes fecais, fármacos, pesticidas e metais (Higuti et al., 1998; Puig et al., 2016; Costa et al., 2017; Oliveira et al., 2019; Panis et al., 2022). Problema esse que infelizmente também ocorre nas águas de outras regiões brasileiras (Bisognin et al., 2019; Montagner et al., 2019; Araújo et al., 2022; Stefano et al., 2022). Esses níveis de contaminantes são suficientes para induzir alterações morfológicas e bioquímicas em espécies de peixes nativos (Oliveira et al., 2019; Vieira et al., 2019; Marins et al., 2020; Ferraz et al., 2021), bem como na tilápia do Nilo (Gemusse et al., 2021; Marins et al., 2021) e outras espécies (Disner et al., 2021). Assim como também o cladócero neotropical de água doce Ceriodaphnia silvestrii, que faz parte da cadeia alimentar de espécies nativas de peixes (Moreira et al., 2020). Nas bacias dos rios Uruguai e Jacuí também há redução dos estoques pesqueiros devido à poluição, pesca ilegal (Biassi et al., 2017) e muitas barragens construídas prejudicando o processo reprodutivo migratório de inúmeras espécies. Entretanto, devemos ressaltar que a matriz energética brasileira é baseada em usinas hidrelétricas. Um estudo recente demonstrou que, em reservatórios Neotropicais, espécies nativas e invasoras respondem de forma semelhante às características limnológicas (Muniz et al., 2021), mas a tilápia do Nilo foi menos influenciada pela temperatura e níveis de oxigênio dissolvido do que o ciclídeo Mayahereos urophthalmus. A tilápia do Nilo também foi menos sensível ao aumento da turbidez do que a tilápia Manyara (Oreochromis amphimelas), uma espécie nativa ameaçada da Tanzânia (Wing et al., 2021). Além disso, em pelo menos um rio do oeste do Paraná, espécies não nativas e tolerantes foram encontradas em locais mais urbanizados (Daga et al., 2012), sendo um dos motivos possivelmente a ausência de carnívoros nativos, por serem mais sensíveis à deterioração da qualidade da água em regiões poluídas. Outro argumento para apontar danos à ictiofauna nativa é a maior agressividade da tilápia do Nilo e sobreposição de nichos, como demonstrado em laboratório contra Cichlidae Geophagus brasiliensis (Sanches et al., 2012), peixe-lua (Lepomis miniatus) (Martin et al., 2010), ciclídeo maia (Gracida-Juárez et al., 2022) e tilápia Manyara (Champneys et al., 2021; 2022). A tilápia do Nilo também prejudicou o crescimento da carpa chinesa nativa da lama (Cirrhina molitorella) (Gu et al., 2015). Essa informação é amplamente utilizada por ambientalistas, mas não há referência ao comportamento da tilápia na natureza – a tilápia é agressiva na natureza como parece ser em um ambiente de cultura (artificial)?

Exótica invasora, casual ou naturalizada?

Richardson et al. (2000), com base em levantamento extenso e crítico da literatura, definiram uma série de termos-chave para conceituar o processo de naturalização/invasão de plantas, que podem ser aplicados às demais espécies. Para os autores, a invasão requer que as espécies introduzidas produzam descendentes reprodutivos em áreas distantes dos locais de introdução, ocasionando perturbações nas comunidades. As espécies exóticas podem ser também casuais, quando não formam populações persistentes. Já a naturalização de uma exótica começa quando as barreiras abióticas e bióticas à sobrevivência e reprodução regular são superadas, ou seja, a espécie naturalizada é aquela que foi introduzida intencionalmente ou não em um novo ambiente e que se adaptou e reproduziu com sucesso nesse local, porém, sem ter ocasionado perturbações nas demais comunidades.  

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Com base nesses conceitos e na presente revisão da literatura, que identificou inúmeros pontos nevrálgicos de interpretação ou má interpretação, os autores recomendam que a tilápia nilótica, presente há 50 anos nos estados do Sul do Brasil, seja retirada da lista de espécies invasoras nessa região do país, pois não existem registros de domínio de ecossistemas naturais nem há elevadas taxas de reprodução e dispersão (à exceção de limitados corpos d’água antrópicos). Somado a isso, trata-se de uma espécie zootécnica de elevado interesse econômico e social, principal ativo da nossa aquicultura e que vem por décadas demonstrando ser casual ou naturalizada, de fundamental importância na geração de empregos, renda, impostos e segurança alimentar, portanto, deve ser melhor estudada para que sua classificação não seja equivocada.

Importante, portanto, que os órgãos ambientais brasileiros, em especial na região Sul, estejam atentos e atualizados com respeito aos impactos da aquicultura, repensando os atos normativos que regulamentam a atividade. Um exemplo disso é a Matriz de Análise de Risco utilizada pelo Ibama/Superintendências Estaduais de Meio Ambiente para as licenças ambientais, que vem penalizando sobremaneira as espécies de alto desempenho zootécnico como a tilápia nilótica, que deveria pontuar positivamente por suas qualidades econômicas e impactos sociais, levando em consideração a longa e benéfica presença da mesma em território nacional.


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