Invasoras Sim! Nada Casuais e Jamais Naturalizadas: O Real Panorama da Tilapicultura no Brasil

Autores
Silvia Maria Millan Gutierre – [email protected], Ivo Gavião Prado, Augusto Luís Bentinho Silva, Adriana Castilho Costa Ribeiro de Deus, Almir Manoel Cunico, Ana Clara Sampaio Franco, Anderson Oliveira Latini, Andre Andrian Padial, André Lincoln Barroso Magalhães, Angelo Antônio Agostinho, Angelo Rodrigo Manzotti, Axel Makay Katz, Carla Simone Pavanelli, Carlos Bernardo Mascarenhas Alves, Carolina Ferreira de Souza, Carolina Rodrigues da Costa Doria, Cláudio Luis Santos Sampaio, Danilo Francisco Corrêa Lopes, Diego Azevedo Zoccal Garcia, Dilermando Pereira Lima Júnior, Éder André Gubiani, Erick Cristofore Guimarães, Felipe Polivanov Ottoni, Fernando Cesar Paiva Dagosta, Fernando Mayer Pelicice, Fernando Rogério Carvalho, Gabriel Lourenço Brejão, José Luís Costa Novaes, José Sabino, Livia Helena Tonella, Luciano Fogaça de Assis Montag, Luís Reginaldo Ribeiro Rodrigues, Marcelo Fulgêncio Guedes Brito, Matheus Oliveira Freitas, Marina Lopes Bueno, Marluce Aparecida Mattos de Paula Nogueira, Mário Luís Orsi, Patricia Charvet, Paula Maria Gênova de Castro Campanha, Paulo Santos Pompeu, Pãmella Silva de Brito, Rodrigo Fernandes, Roger Paulo Mormul, Rosa Maria Dias, Telton Pedro Anselmo Ramos, Thalles Gomes Peixoto, Tommaso Giarrizzo, Wagner Martins Santana Sampaio, Welber Senteio Smith, Vinícius Abilhoa, Jean Ricardo Simões Vitule

Assunto

Falta de critério científico e distorções de informações no texto “Invasoras, Casuais ou Naturalizadas? Buscando uma classificação científica para as tilápias”, publicado na Revista Panorama da AQÜICULTURA em 20/04/2023, por Sergio Zimmermann, Renata M. Barroso Bertolini, Bruno M. Queiroz, Bernardo Baldisserotto e Danilo Streit.

Contexto

Considerando a relevância da Revista Panorama da AQÜICULTURA no Brasil, bem como a abrangência do seu público leitor, nos preocupa que o artigo “Invasoras, Casuais ou Naturalizadas? Buscando uma classificação científica para as tilápias”, publicado em 20/04/2023, veicule informações equivocadas ou sem bases científicas sobre o cultivo de tilápias, sua categorização ecológica e em termos de legislações e seu potencial gerador de prejuízos ecológicos e socioambientais para futuras gerações. Adicionalmente, o texto pode amplificar algumas reflexões importantes para o setor produtivo e cientistas da área referentes ao ciclo total deste tipo de produção e seus reais passivos ambientais, diretos e indiretos, em ampla escala. Portanto, com o intuito de prover mais informações aos leitores, apresentamos um texto que (i) sumariza o conteúdo científico disponível na literatura acerca das invasões biológicas referente às tilápias, (ii) aponta e redireciona informações e argumentos enviesados, e (iii) esclarece informações no contexto da legislação brasileira e internacional sobre as espécies exóticas invasoras, para os milhares de leitores da revista, certamente interessados pelo desenvolvimento da aquicultura e sua sustentabilidade.

As tilápias (tribo Tilapiini; e.g. gêneros Coptodon Gervais, 1853, Oreochromis Günther, 1889 e seus híbridos) são naturais de drenagens africanas. Devido ao seu longo tempo de investimento em pesquisa de seleção e melhoramento, apresentam um bom desempenho em termos zootécnicos. Por essas características, e sobre um prisma primordialmente produtivista, foram amplamente disseminadas e incentivadas em atividades de aquicultura de variadas escalas, levando a escapes em diversos ecossistemas ao redor do mundo, com registros de invasão e impactos negativos em mais de uma centena de países, incluindo o Brasil (Casal 2006; Figueredo & Giani, 2005; Vitule 2009; Attayde et al., 2011; Latini et al. 2016; Birck et al 2019; Vitule et al. 2019; Shuai & Li 2022; Fricke et al. 2023; Froese & Pauly 2023; Shuai et al. 2023).

No Brasil, as introduções de tilápias e sua dispersão, para além do confinamento dos cultivos, têm ocorrido de forma indiscriminada, crescente, massiva e espacialmente difusa ao longo dos últimos 70 anos (Figueredo & Giani 2005; Attayde et al. 2011; Latini et al. 2016; Birck et al. 2019; Vitule et al. 2019). Atualmente as tilápias são reconhecidas como uma das espécies invasoras mais perigosas para a biodiversidade nas regiões tropicais e subtropicais do mundo (Latini et al. 2016; Birck et al. 2019; Shuai & Li 2022; Shuai et al. 2023), em virtude dos riscos e impactos ambientais associados ao processo de colonização, interações ecológicas e dispersão.

Argumento dos autores

O texto de Zimmermann e colaboradores (2023), publicado pela Revista Panorama da AQÜICULTURA , edição 191, defende uma distinção no status das tilápias introduzidas no país, de modo a revisar o entendimento e minimizar os riscos associados. Para tanto, apresentam uma ideia pré-concebida e sem dados analíticos de custo-benefício de que as tilápias são mais benéficas do que prejudiciais aos locais onde foram introduzidas. Sobre esse prisma sugerem a “naturalização” das espécies de tilápia para o território nacional, com base em dados superficiais e enviesados, pontuando somente seus benefícios econômicos e argumentam, também sem dados consistentes, que a presença de tilápias no Brasil se restringe essencialmente a lugares já degradados ou altamente alterados. Os autores afirmam ainda que não existem evidências científicas sobre os impactos negativos da invasão dessas espécies, além de solicitarem veementemente a flexibilização de leis que regulam o cultivo das tilápias no país. De forma geral, os autores deturpam um vasto conhecimento científico consolidado e ainda apresentam equívocos graves acerca dos conceitos e terminologias básicas de invasões biológicas, com forte negligência à literatura científica nacional e internacional sobre os impactos negativos das espécies exóticas invasoras, incluindo em particular os dados sobre as tilápias. Além disso, ignoram ou apresentam ideias enviesadas sobre todo o aspecto biogeográfico, ecológico e o arcabouço legal da introdução de espécies exóticas invasoras e políticas ambientais nacionais relacionadas aos pilares ambientais e sociais e de sustentabilidade de longo prazo, especialmente relacionado à conservação da biodiversidade. Dessa maneira, a seguir esclarecemos pontualmente os principais equívocos e a ausência de acurácia nos argumentos insustentáveis expostos pelo artigo aqui tecnicamente criticado.

Equívocos na terminologia de biologia das invasões

Apresentar no título: “Invasoras, Casuais ou Naturalizadas? Buscando uma classificação científica para as tilápias”, demonstra, por parte dos autores, um claro desconhecimento sobre a vasta literatura em ciência das invasões, disponível de forma ampla e de fácil acesso sobre os assuntos especulados. Por exemplo, o trabalho de Blackburn et al. (2011) sumariza e estabelece um consenso sobre as definições e terminologias relacionadas ao processo de invasão biológica. No caso das tilápias, seu processo de invasão em território brasileiro, mediado pela aquicultura e peixamentos, atende, inequivocamente, a todos os critérios para classificá-la como invasora. Em outras palavras, sobre os aspectos ecológicos, são capazes de reproduzir, dispersar, atingir elevadas abundâncias, além de causar uma série de efeitos negativos (ver tópico abaixo). Inclusive, assumindo um discurso negacionista, os autores desconsideram que não existe a necessidade de registrar os impactos em todo e qualquer sistema em que uma espécie é introduzida para considerá-la invasora, já que estudos com base no método científico são extrapoláveis. Além disso, os autores ignoram as evidências existentes e parecem não compreender que biologicamente o conceito de invasões biológicas vai muito além dos limites geopolíticos, simplesmente pelo fato das espécies não reconhecerem nem respeitarem fronteiras estabelecidas politicamente por humanos (Vitule et al. 2019).

Todas as espécies de tilápias presentes no Brasil são oficialmente categorizadas como espécies exóticas invasoras em diversas bases de dados nacionais e internacionais, especialmente por apresentarem registros e evidências de impactos negativos e/ou por estarem bem estabelecidas, alterando a estrutura das comunidades dos ecossistemas locais. Dessa forma, solicitar a reavaliação de atos normativos que regulamentam a atividade de cultivo de espécies não-nativas, bem como solicitar leis menos rigorosas em relação à introdução e uso comercial dessas espécies, é negar o sólido e vasto catálogo de evidências científicas e enaltecer o interesse político e econômico correlato ao tema, sem considerar a conservação da biodiversidade e a sustentabilidade em larga escala como parte do sistema.

Negligência com a literatura científica

Os autores afirmam que não existem trabalhos científicos que comprovem impactos ambientais e socioeconômicos das tilápias. Entretanto, existe vasta literatura publicada em revistas científicas consagradas que atestam, descrevem e/ou discutem esses impactos negativos provocados direta ou indiretamente pela introdução de tilápias em diversos tipos de ecossistemas e biomas. Alguns dados que apresentamos aqui são, inclusive, similares aos presentes na Nota Técnica publicada por Agostinho et al. (2017) e a lista de Occhi et al. (2021), o que torna a presente seção do texto uma reapresentação de dados já exaustivamente consolidados na literatura científica há tempos.

Tilápias vêm sendo associadas a diferentes processos de impactos negativos como, por exemplo, homogeneização biótica (Bittencourt et al. 2014; Daga et al. 2015); redução da diversidade e/ou substituição de espécies nativas devido à predação e competição (Bittencourt et al. 2014; Latini et al. 2016; Cassemiro et al. 2018; Yongo et al., 2023); desaparecimento e possível extinção de espécies endêmicas (Strecker 2006); infecção por patógenos co-introduzidos (Strecker 2006); sobreposição e competição por nicho (Vitule 2009; Martin et al. 2010; Sanches et al. 2012; Yongo et al. 2023); deslocamento de espécies nativas que as tornam mais susceptíveis à predação (Martin et al. 2010); eutrofização e alteração na qualidade da água (Starling et al. 2002; Figueiredo & Giani 2005; Attayde et al. 2007; Demétrio et al. 2012; Latini et al. 2016; Cassemiro et al. 2018; Yongo et al. 2023); efeitos negativos sobre a densidade do zooplâncton de maior porte afetando o recrutamento de peixes, que também se alimentam desse item em suas fases iniciais de desenvolvimento (Attayde et al. 2007); e perturbações e modificações na estrutura trófica de espécies de peixes nativos (Shuai & Li 2022; Shuai et al. 2023). Mesmo em reservatórios, onde em alguns estados do Brasil é permitido por lei o cultivo de tilápia, a pesca da espécie não trouxe necessariamente benefícios socioeconômicos aos pescadores locais (McKaye et al. 1995; Agostinho et al. 2007; Attayde et al. 2011), como muitas vezes se argumenta para favorecer peixamentos. Inclusive, ambientes sem espécies exóticas apresentam maior valor agregado e sustentabilidade da atividade pesqueira (Novaes & Carvalho 2013). Embora as tilápias tendam, segundo o catálogo atual, a se alimentarem em níveis tróficos baixos, há também muitas evidências de que podem se alimentar de ovos, larvas e até mesmo de pequenos peixes (Canonico et al. 2005). Além disso, o deslocamento de habitat por competição pode expor os peixes nativos à predação e, indiretamente, diminuir as suas taxas de sobrevivência (Martin et al. 2010). Tudo isso somado a outros impactos elencados por Occhi et al. (2021).

O fato dos reservatórios ou ambientes poluídos já serem ambientes alterados foi utilizado pelos autores como argumento de que os impactos das invasões de tilápia sobre a biota nativa seriam irrelevantes. Esse argumento oculta o fato das espécies invasoras serem poluentes biológicos e, como tal, tanto a sua introdução deliberada quanto os escapes por negligência, são formas de poluição e um passivo ecológico e social em potencial para as futuras gerações. Ademais, reservatórios são considerados trampolins para que espécies invasoras, utilizando a baixa resistência biótica, possam se proliferar e dispersar para os trechos naturais da bacia (Johnson et al. 2008; Ortega et al. 2015), incluindo unidades de conservação. Em ambientes onde a poluição é dominante, a tilápia contribui para piora na qualidade da água (como relatado acima), tornando-se dominante em detrimento de outras espécies nativas resistentes, além de não contribuir para a reversão do cenário poluente. Cabe salientar ainda que alguns dos impactos relacionados ao cultivo da tilápia ocorrem principalmente nesses ambientes antropizados, onde diferentes fontes de impactos negativos interagem entre si para potencializar ainda mais os efeitos nocivos sobre a biota e os ecossistemas. Inclusive, vale ressaltar que não podemos ignorar nossa dificuldade em detectar impactos de longo prazo ou retardos temporais nos impactos negativos causados por espécies exóticas invasoras, que também é algo já bem descrito há tempos (ver: Vitule 2009; Vitule et al. 2009; Vitule & Prodocimo 2012). Mesmo a ausência de evidências de registros de alguns tipos de impactos indesejados, especialmente os ecológicos de longa escala temporal, não significa que há uma real ausência de impactos negativos, mas sim que simplesmente ainda não houve tempo suficiente, ou esforço de campo adequado para tal detecção do impacto negativo acontecer, ou simplesmente o fato que não tivemos capacidade técnica, logística e financeira para medir e quantificar tais impactos.

Além disso, é importante destacar que os autores não citam estudos baseados no método científico que indiquem a ausência de impacto ou a ocorrência de apenas impactos positivos em algum sistema aquático natural brasileiro. Os autores não parecem ter realizado nenhum tipo de revisão com um critério científico, por mais simples que fosse detectar isso. Por isso, é importante destacar que todo o texto aqui criticado, foi explicitamente construído com base na subjetividade com uma perspectiva limitada e pessoal dos autores, contrariando o preceito científico da objetividade, o que deveria inclusive ser destacado e rebatido devidamente pelos editores desta revista, para simplesmente evitar a transmissão e geração de equívocos dentre os leitores. Ignorar os dados científicos, propagar informações falaciosas e desconsiderar a grande importância de explorar o potencial produtivo nacional demonstra uma conduta antiética por parte dos autores.

Uso incorreto de informações e conceitos

O texto de Zimmermann e colaboradores se utiliza erroneamente da citação de artigos clássicos para insistir na naturalização das tilápias. O trabalho citado pelos autores, de Richardson et al. (2000), apesar de ser uma grande base científica para a biologia das invasões, foi posteriormente revisado por Blackburn et al. (2011), onde o conceito de invasão e naturalização foram precisamente esclarecidos. Inclusive David Mark Richardson – um dos co-autores do trabalho de Tim Blackburn – atestou que a atualização dos conceitos foi feita com a concordância e participação dele, um dos principais especialistas da área. De forma equivocada, Zimmerman e colaboradores se valem da definição de “espécie naturalizada” sob uma perspectiva ecológica, em uma escala temporal erroneamente curta. Segundo Richardson et al. (2000) e Blackburn et al. (2011) o processo de naturalização de uma espécie se dá ao longo de séculos, 500 anos ou mais. Considerando que as tilápias foram introduzidas no Brasil há cerca de 60 a 70 anos, é incompatível tentar aplicar esse conceito às espécies.

No entanto, se valendo desse conceito temporalmente incorreto, existe forte pressão no Brasil pela “naturalização por decreto” de espécies não-nativas (Pelicice et al. 2014; Brito et al. 2018). As tilápias são um símbolo icônico de tais pressões de um setor pequeno, mas politicamente influente, a fim de fomentar o desenvolvimento de uma aquicultura simplista que considera apenas o ponto de vista econômico e de produção a curto prazo, sem uma devida preocupação com seus possíveis impactos e riscos para questões ambientais e sociais em escalas amplas e para futuras gerações (Vitule et al. 2012; Charvet et al. 2021). Vimos, por meio do texto publicado pela Revista Panorama da Aquicultura, mais um exemplo da ação desse lobby às custas do demérito das pesquisas sobre o assunto. Reverter o status da tilápia de invasora para “naturalizada” abre brechas na legislação brasileira que, em geral, regulamenta apenas invasoras. Há também várias evidências de que o cultivo de tilápias realizado no Brasil, quando devidamente ponderado nos termos da tríade de sustentabilidade, é bastante fraco e defasado, por exemplo, comparado à produção de países como a China, especialmente se levando em consideração a produtividade total e as relações entre essa e o uso e escapes de espécies exóticas invasoras ao longo do tempo (por exemplo: Lima Junior et al. 2018; Nobile et al. 2020; Kang et al. 2022).

Conflitos com a legislação e políticas ambientais

O cultivo de tilápias tradicionalmente registra escapes e, consequentemente, aumenta o risco de invasões, tornando-se conflitante com diversos aspectos da legislação ambiental nacional e internacional. Entre os inúmeros exemplos, podemos citar a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), aprovada pelo Decreto Legislativo 2 de 1994, sendo promulgada pelo Decreto 2.519/1998 e publicada no Diário Oficial da União em 17 de março de 1998, sendo, portanto, executória em todo o território brasileiro. A CDB estabeleceu normas e princípios para o uso e proteção da diversidade biológica. Em relação às espécies exóticas, a Meta 6 do novo Marco Global visa eliminar, minimizar ou mitigar os efeitos das espécies exóticas invasoras na biodiversidade e nos serviços ecossistêmicos, por meio da detecção e gestão das vias de introdução dessas espécies exóticas invasoras (Lima Junior et al. 2018).

É manifesta a desinformação contida no artigo de Zimmermann e colaboradores (2023), visto que alegam erroneamente que a tilápia não figura em nenhuma lista Federal de espécies exóticas. A tilápia é considerada uma das espécies de destaque abrangidas pela Estratégia Nacional para Espécies Exóticas Invasoras. Tal estratégia, implementada por meio da Resolução CONABIO 07/2018, resulta na consolidação das diretrizes e decisões estabelecidas pela CDB, com aplicação em diversas esferas governamentais e setores de governança ambiental no âmbito nacional. A lista de espécies contidas na Estratégia (disponível em https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/biodiversidade/fauna-e-flora/aguas _continentais_final.pdf) foi elaborada por um vasto painel de renomados especialistas de cada grupo faunístico e revisado pelas entidades públicas vinculadas (IBAMA, ICMBio e JBRJ), atestando sua pluralidade e embasamento cientifico. Além da estratégia nacional, diversas unidades da federação têm divulgado recentemente – por meio de suas Secretarias Estaduais de Meio Ambiente – listas oficiais de espécies exóticas invasoras com ocorrência registrada em seus limites geográficos. Em todas as listas, a tilápia-do-Nilo (Oreochromis niloticus) é apresentada e defendida com todas as bases teóricas, legais e empíricas de consultas para os melhores especialistas como espécie exótica invasora.

O meio ambiente, mencionado no Art. 225 da Constituição Federal de 1988, é um bem intergeracional, ou seja, pertence não apenas à geração atual, mas também às futuras gerações. Nesse sentido, temas como a introdução e cultivo de espécies invasoras, como as tilápias, que causam impactos negativos ao meio ambiente, devem ser discutidos com urgência. Portanto, é necessário intervir para evitar a disseminação e minimizar os efeitos dessas espécies invasoras, garantindo a proteção do meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Assim, o ordenamento jurídico brasileiro reconhece a importância da melhoria da qualidade ambiental e adota o princípio da progressividade em matéria ambiental, como estabelecido no artigo 2°, caput, da Lei 6.938/81 – Política Nacional do Meio Ambiente. Esse princípio tem respaldo na jurisprudência do STJ e é uma diretriz normativa e hermenêutica relevante para a resolução de conflitos ecológicos. Cabe destacar que diversos dos aspectos acima apontados já foram exaustivamente discutidos em outros artigos de alguns dos autores deste trabalho (por exemplo: Pelicice et al. 2014; Nobile et al. 2020; Lima Junior et al. 2018 e várias referências contidas dentro deles, inclusive todos esses publicados em periódicos específicos da área de aquacultura).

Conclusões

As informações apresentadas no texto de Zimmermann e colaboradores parecem influenciadas pelo interesse daqueles que se beneficiam do cultivo de tilápias, de forma direta (comércio do pescado) ou indireta (comércio de suprimentos e insumos, incluindo a venda de alevinos) com graves juízos de valores envolvidos neste ponto, e obviamente que invalidam suas argumentações por simples questões éticas a priori. O artigo, portanto, não tem isenção mínima e tampouco embasamento científico e, por esta razão, tem alto potencial de induzir os leitores a entendimentos errôneos sobre um cenário complexo de intensificação das invasões biológicas de peixes, e toda a degradação ambiental associada.

De maneira inequívoca, a classificação das tilápias como espécies invasoras e causadoras de impacto em território nacional é amparada em extensa literatura científica de abrangência internacional. Essa literatura é contundente quanto ao papel das tilápias na degradação dos ecossistemas, erosão da biodiversidade, e promoção de danos ambientais no Brasil e no mundo. Neste cenário, textos como o de Zimmermann e colaboradores fazem mau uso de informação técnica e confundem a sociedade civil por privilegiar os interesses econômicos de alguns setores produtivos específicos, por vezes de relevância limitada, mas com forte poder econômico e político. No momento, não existe conhecimento científico que contradiga esta realidade.

O Brasil baseia sua produção em tilápias e outras espécies exóticas, desvalorizando nossa biodiversidade e perdendo oportunidades de se fazer algo realmente novo também em escala local. Temos potencial biológico para produzir espécies nativas em cada grande bacia do território nacional, valorizando a regionalização dos cultivos e uma menor pegada ecológica, além de muitos outros pontos importantes relacionados à sustentabilidade.

Este episódio é mais um dos vários exemplos ruins do setor produtivo e de como uma pseudo-autoridade científica em escala local e limitada pode ser usada de maneira inadequada, com baixo compromisso com a verdade, para sustentar interesses de grupos particulares, no caso, o cultivo indiscriminado de peixes exóticos invasores, com sabidos escapes e impactos negativos nos ecossistemas nacionais e internacionais. Estes interesses podem ser legítimos, desde que sejam discutidos de maneira isenta, técnica e transparente com a sociedade e tenham amparo correto da literatura científica nas temáticas ambientais. Todos os cientistas aqui envolvidos lamentam novamente ter de gastar tempos com argumentações já realizadas, mas, ao mesmo tempo, colocam-se à disposição para um debate aberto e transparente e, inclusive, visando buscar soluções conjuntas para melhores práticas dentro do setor aquícola, desde que estas considerem outros aspectos importantes da tríade de sustentabilidade de forma concreta e transparente.

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