Por:
Ricardo Y. Tsukamoto
Bioconsult-Puriaqua, [email protected]
Neuza S. Takahashi
Instituto de Pesca, APTA/SAA/SP
[email protected]
ABNT submete Norma para a aquicultura para Consulta Pública e setor está convidado a participar Ao longo de 2013 a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) reuniu especialistas do setor com a finalidade de redigir uma Norma cujo título geral é “Aquicultura – Boas Práticas de Manejo para o cultivo”, prevista para conter cinco partes: 1. Requisitos gerais, 2. Requisitos específicos para Tilápia; 3. Requisitos específicos para Tambaqui; 4. Requisitos específicos para moluscos bivalves e, 5. Requisitos específicos para carcinicultura. |
Todo Guia de Boas Práticas é elaborado com o propósito de indicar as técnicas e procedimentos mais eficazes para aperfeiçoar a qualidade de um processo. E foi provavelmente com este espírito de criar um instrumento de orientação, que um grupo voluntário de profissionais da área de aquicultura foi reunido algumas vezes durante o ano de 2013 para elaborar tal documento. Contudo, o resultado final não seguirá aquele singelo objetivo. Pois o documento “Aquicultura – Boas Práticas…” está na reta final para ser publicado como uma Norma ABNT, abreviado como NBR (“Norma Brasileira”). O que isto significa?
O objetivo de toda NBR é estabelecer um padrão de procedimentos que garanta a qualidade necessária num determinado processo ou produto. E para que isto ocorra, após a publicação de uma NBR, os órgãos Normativos criam a exigência de que os itens daquela NBR sejam integralmente cumpridos pelos membros daquele setor. Resultado prático: ou cumpre ou não pode mais operar, está fora do jogo.
Tal padronização (“Normalização”) em processos por NBR é necessária para assegurar a qualidade dos produtos – à exceção desta Norma da aquicultura. Mas, por quê? Justamente por que esta Norma é uma dupla exceção à NBR tradicional. Tipicamente, cada NBR tem como alvo um processo muito específico, e jamais genérico. Na área agropecuária, por exemplo, a Apicultura tem NBR de preparo de amostra de mel para análise (NBR 15714-1:2009), de medição de umidade no mel por refratometria (NBR 15714-2:2009), de produção de própolis no campo (NBR 16168:2013), de como deve ser uma colmeia Langstroth (NBR 15713:2009), e mais quatro NBRs nesta linha. Quem é da área acadêmica já deve ter tido a experiência de fazer a bibliografia de suas teses obedecendo ao modelo da NBR 6023:2002, mesmo que ela esteja distante do padrão científico internacional e seja incompatível com os periódicos internacionais.
Em contraste àqueles tópicos especializados tradicionais da NBR, a Aquicultura é legalmente um universo excessivamente amplo no Brasil. Tão amplo que qualquer hobbyista que mantenha um tanquinho no quintal com peixes ornamentais é enquadrado como aquicultor pela legislação brasileira. Tal não ocorre com nenhum outro cidadão que mantenha umas galinhas (registro de avicultor?) ou uns porcos (registro de suinocultor?) no fundo do quintal. Pois, mesmo tal hobbyista está incluso como aquicultor e também deverá cumprir as abrangentes regras da nova NBR de Aquicultura (vide abrangência abaixo).
“Partes 1, 2, 3 e 4 1. Escopo: Esta Norma é aplicável a todos os empreendimentos de aquicultura, incluindo propriedades individuais e grupos de produtores, independentemente do tamanho ou complexidade.” |
Apesar da grande diversidade de condições dos aquicultores no Brasil, chama a atenção o fato da Aquicultura ser o único setor da sociedade que está sendo englobado por uma única Norma ABNT no país. Ao contrário das NBRs especializadas tradicionais de todos os outros setores nacionais, uma única Norma genérica para a Aquicultura tende a colocar algemas em todo este setor produtivo multifacetado. Cabe aqui uma pergunta: por que a NBR da Aquicultura está sendo feita desta forma, não sobre processos técnicos específicos como em toda a história da ABNT, mas como única exceção genérica global? Algum propósito paralelo ou agenda?
Quando uma Norma ABNT é publicada, ela não tem por si mesma, o poder de exigir que as práticas nela descritas sejam seguidas pelo setor. Logo em seguida, porém, os órgãos Normativos do setor – que já aguardavam a publicação adotam aquela NBR como padrão a ser obedecido pelo setor. Assim, uma NBR somente tem adesão voluntária no curto período até ser incorporada pela legislação do setor (por lei, decreto, ou medidas internas ao órgão como Resolução, Portaria, Regulamento, Normativa, e outros), conforme definição da própria ABNT:
“ABNT NBR é a sigla de Norma Brasileira aprovada pela ABNT, de caráter voluntário, e fundamentada no consenso da sociedade. Torna-se obrigatória quando essa condição é estabelecida pelo poder público.” Fonte: www.abnt.org.br/m2.asp?cod_pagina=963# |
E aqui reside o grande foco de problema desta NBR da Aquicultura. Primeiro, engloba de forma genérica todos os considerados “aquicultores”, mesmo os de lazer, micro e não comerciais, exigindo de todos, o cumprimento dos rigorosos dispositivos da Norma. E, para complicar, o texto da Norma não foi escrito para ser Norma.
Existe uma grande diferença entre um texto ser escrito para ser um guia de adesão voluntária e um texto para se tornar legislação. Todo texto destinado a se tornar legislação deve ser absolutamente conciso e muito específico nos seus itens. Pois, uma única vírgula fora do lugar pode inverter o sentido desejado. Ali, os conceitos devem ser tecnicamente objetivos e inteiramente realistas, pois deverão ser literalmente cumpridos. Em contraste, um texto para um guia informal de boas práticas pode ser flexível, e até avançar em desejos subjetivos e utópicos para o setor, pois ninguém será obrigado a cumprir literalmente o que está ali escrito. Infelizmente, porém, a Norma da aquicultura foi escrita com um espírito muito mais de guia do que de legislação a ser estritamente cumprida. Um exemplo explícito deste espírito está na exigência ambiental:
Parte 1 – Requisitos Básicos 4. Requisitos 4.8.2 – Efluentes Líquidos Os efluentes dos empreendimentos de aquicultura devem ter qualidade similar ou superior à dos afluentes. |
Esta é uma clara utopia, impossível de ser efetivada na prática, tanto na aquicultura como em qualquer outra atividade humana. Justamente por isso, é que a legislação brasileira e de outros países estabelecem – com base nas características específicas de cada atividade e corpo d´água – as capacidades de carga e os limites máximos de parâmetros permissíveis no efluente.
Nós brasileiros somos muito sentimentais, e isto nos leva a abusar em detalhes desnecessários, gerando mandamentos inexecutáveis nas legislações generalistas. O melhor exemplo disto é a própria Constituição Brasileira de 1988, em grande parte inaplicável pelos mandamentos utópicos, como juros máximos de 12%/ano e outros pontos. Infelizmente, tal desejo de pré-delimitar tudo o que outrem pode fazer também está expressa em itens nesta Norma da Aquicultura. A Norma foge de seu escopo de boas práticas do aquicultor quando chega ao exagero de pré-decidir o que os órgãos Normativos devem fazer ou cobrar do aquicultor, numa completa ingerência sobre o poder público.
Vamos colocar aqui dois exemplos, ambos da etapa inicial de tentar aprovar uma aquicultura; há vários outros. Se o pretendente a aquicultor não conseguir tais certificados para a análise inicial, melhor desistir de sonhar com aquicultura.
Parte 2 – Tilápia Requisitos específicos O empreendimento deverá apresentar declaração do órgão ambiental, ou documento equivalente, baseado em dados técnicos de que as espécies cultivadas estão adaptadas na bacia hidrográfica receptora da operação. |
Na prática, dificilmente um órgão ambiental ou seu funcionário emitirá tal certificado de que a espécie exótica está OK na região. Pois há o risco de, numa reinterpretação futura pelo poder público, aquele funcionário e seus chefes serem acusados de leniência pela Lei de Crimes Ambientais (Lei Federal 9605/1998), sujeitando-os a cadeia e multa.
4.1 Autorizações e Funcionamento do empreendimento 4.1.1 Cumprimento da Legislação Os representantes legais do empreendimento aquícola devem demonstrar sua capacidade de assegurar o cumprimento dos acordos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e da legislação federal, estadual e municipal em vigor, relacionados à sua atividade. |
Que órgão do governo tem estrutura ou conhecimento integrado para criar um atestado assegurando que um empreendimento proposto está em conformidade com cada um dos muitos itens abrangidos no enunciado acima? Note que tal documento deve ser emitido antes da aquicultura ser implantada, como etapa preliminar no processo. Só por vidência alguma autoridade iluminada poderia determinar se todos os acordos e legislações nacionais e internacionais existentes – muitos conflitantes entre si – seriam cumpridas pelo empreendimento a ser constituído.
O direito privado do empreendedor da aquicultura é infringido por exigências (abaixo) no processo inicial de apresentação do processo, ao exigir dados detalhados da estratégia financeira do empreendimento. Tais informações são proprietárias e sigilosas, cabendo somente ao empreendedor e seus sócios. Além disso, somente grandes projetos poderiam gerar as informações exigidas.
“Parte 1 – Requisitos Básicos 4. Requisitos 4.1 Autorizações e Funcionamento do empreendimento 4.1.2 Planejamento econômico do empreendimento Os representantes legais pelo empreendimento aquícola devem ter planejamento para implementação de suas atividades, incluindo a oferta de produtos levando em consideração sua sustentabilidade econômica a longo prazo. |
4.1.2.1 A administração do empreendimento aquícola deve dispor de plano de negócios regularmente atualizado, ainda que simplificado, para demonstrar a sua viabilidade e sustentabilidade no longo prazo, contendo no mínimo as seguintes informações:
a) análise e segmento de mercado que se pretende atingir. Na referida análise devem ser consideradas as espécies mais adequadas para a realidade climática e sistema de cultivo, selecionando-se, dentre elas, as mais rentáveis;
b) estudo, dentre as espécies indicadas na análise de mercado, sobre a biologia, ecologia, doenças e reprodução;
c) conceituação do produto;
d) política de formação de preços;
e) política de comercialização e estratégias de promoção;
f) investimentos requeridos e estrutura de custos;
g) viabilidade econômica.
4.9 Gestão e Registros
Toda entrada e saída de insumos (rações, medicamentos ou outros produtos químicos) devem ser registrados e os registros devem estar disponíveis para consulta pelos órgãos fiscalizadores.”
[obs.: na Norma, segue uma Planilha com numerosos registros obrigatórios; vide Norma]
[obs.: palavras sublinhadas: nosso destaque]
As observações acima são apenas uma amostra das consequências previstas segundo nossa experiência de três décadas com NBR, em várias áreas da indústria.
Como a NBR da aquicultura é tão abrangente sobre o setor e os “aquicultores”, os numerosos órgãos Normativos federais, estaduais e municipais devem estabelecê-la como padrão exigido após ser publicada na versão final. Tal adoção governamental é praxe para as Normas convencionais produzidas pela ABNT, pela sua tradicional alta confiabilidade. Assim, se o IBAMA, o MPA, as secretarias estaduais de meio ambiente, e outros órgãos adotarem tal padrão, qual será a possibilidade de aprovação de algum projeto aquícola?
As exigências complicadas da Norma representam um tremendo aumento de burocracia, num típico processo cartorial de produção de papéis. E para tentar destrinchar o emaranhado de exigências, algumas quase impossíveis na prática, deverão surgir os consultores especializados. Atuarão como neo-despachantes no setor da aquicultura. A qual, daqui para diante, receberá encargos que não existem em nenhuma outra atividade agropecuária ou industrial no país.
O aquicultor brasileiro típico é do tipo artesanal, com pouquíssimo dinheiro disponível, e consequentemente resistente a gastar. Neste contexto, deve-se esclarecer que qualquer Norma NBR só pode ser obtida por compra da ABNT ou de seus representantes. Legalmente, uma NBR não pode ser copiada ou xerocada, devendo cada ente abrangido comprar o seu próprio original, a custo não desprezível.