Durante a sua trajetória a Revista Panorama da Aqüicultura criou, em 1997, a Panorama-L, a primeira lista de discussão brasileira sobre aqüicultura, na Internet, um fórum gratuito, por onde passam (e ficam) inúmeros especialistas. Nesse espaço virtual, muitas dúvidas técnicas são sanadas e diversas questões polêmicas elucidadas, graças àqueles que, com o despojamento natural de quem sabe, contribuem com seus ricos conhecimentos para o desenvolvimento da atividade em nosso país. Nessa edição 100, além de agradecer a todos os que da lista participam, homenageamos especialmente o biólogo e amigo Ricardo Tsukamoto, por sua presença valiosa na Panorama-L. A “Notícias & Negócios – online” dessa edição, publica algumas de suas respostas, que tanto contribuem para a disseminação da informação científica em nossa lista. Ao Ricardo, o nosso abraço.
De: Vagner Leonardo Macedo dos Santos
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Assunto: Unidade de dosagem para HCG
Sou estudante de biologia e pretendo trabalhar com reprodução de peixes marinhos. Estou lendo vários artigos e sempre encontro a dosagem de HCG utilizada para indução em UI/kg da matriz, diferentes dos demais hormônios utilizados para mesma finalidade estando em mg/kg da matriz. Pergunto o que significa UI e se dá para converter em mg, caso alguém tenha este conhecimento será de grande ajuda para meu trabalho. Aguardo retorno.
De: Ricardo Y. Tsukamoto
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Assunto: Re: Unidade de dosagem para HCG
Caro Vagner, UI significa unidade internacional. A gonadotropina é um hormônio extraído comercialmente de tecidos distintos do corpo, conforme a fonte “doadora”: da hipófise (de peixe, rã ou frango), da placenta (cavalo ou humano) e da urina (de cavalo ou humano). O mais fácil de encontrar na farmácia é o HCG (gonadotropina coriônica humana). A gonadotropina é uma molécula protéica muito grande e complexa. O produto comercial contém a gonadotropina purificada, mas com resíduos de outras proteínas. Além disso, a molécula da gonadotropina é parcialmente inativada durante os processos de extração, purificação e preservação. Por estas incertezas é que não há razão para quantificá-la em peso e sim em função da atividade que o produto final tem. A UI indica justamente esta atividade, medida em cada lote produzido e padronizado. Toda a literatura adota as dosagens de HCG em UI, de modo que também não há razão científica em querer quantificar a dose em mg/L, por não significar nada palpável na prática. Por diversas razões, no atual estágio de desenvolvimento da reprodução induzida de peixes, os agentes indutores mais práticos de usar são o extrato de hipófise (em geral de peixe, rã ou frango) e os análogos do hormônio liberador da gonadotropina (há vários GnRH ou comerciais). Não há praticamente mais motivo prático para usar o produto humano (HCG), uma vez que há alternativas melhores e mais baratas, além da questão ética de usar um produto que foi extraído de humano para ser usado em benefício da saúde humana. Como teste, uma busca no Google com as palavras “GnRH fish reproduction” deu 83.900 links. Boa sorte nas pesquisas e um grande abraço.
De: Cristiano Borsato
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Assunto: Aos criadores de tilápia de SP
Olá, estou fazendo uma pesquisa de mercado, pois tenho interesse na criação de Tilápia. Desta forma eu pergunto aos criadores de tilápia: 1) Vocês vendem a produção para alguma empresa? 2) Qual a cotação da tilápia?
De: Ricardo Y. Tsukamoto
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Assunto: Re: Aos criadores de tilápia de SP
Prezado, me sinto compadecido por você estar totalmente perdido, em especial por virem de fora do setor, mas com a boa vontade em investir em aqüicultura. Por isso, apesar de eu geralmente não entrar em discussão neste tipo de tema, vou dar um palpite. O número atual da Panorama da AQÜICULTURA, que acaba de sair, tem uma extensa análise dos mercado nacional e internacional da tilápia. Isto porque o mundo está passando por uma virada no mercado de tilápia, que colocará pressão em breve sobre o mercado nacional, inclusive com a provável importação de produto da China. Uma enorme produção também está sendo alavancada no Nordeste do nosso país, de modo que o mercado para tilápia como commodity (abatido, filetado, congelado) não oferecerá condição viável para criadores do Sudeste que utilizem ração (o consorciamento com porcos é feito basicamente no Sul). Deve-se cuidar também com o sistema a ser usado para produzir os peixes. Até agora no Brasil, cria-se tilápia em tanques de terra (chamados “viveiros” no Nordeste) e em tanques-rede. E os criadores esperneiam para manter o custo mais baixo possível, e talvez nem assim consigam concorrer com produto de outras origens. Por isso, sistemas mais intensivos e de recirculação – que têm custo operacional muito alto – seriam inviáveis para tal propósito (e se chegarem a funcionar para tal). Procure visitar um criador que realmente produza em maior escala com o sistema que proposto pelo vendedor. Poderia também usar esta e outras listas de discussão para levantar tais criadores. Geralmente quem está prospectando uma área nova para investimento contata um consultor específico daquela área para trabalhar com informações “pé no chão”. Por exemplo, o autor do artigo mencionado acima é o mais atuante deles, mas há muitos outros excelentes. E há, inclusive, criadores tecnificados de tilápia em São Paulo que vieram de outros negócios e profissões, como o médico Francisco Leão (desta lista), que podem lhe transmitir a visão e a perspectiva de investidor, que podem ser distintas das do técnico ou do político.
De: Sandra Maria Xavier Lemos
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Assunto: Cepa de microalgas
Oi,amigos! Estamos querendo trabalhar aqui no Centro de Pesquisas em Carcinicultura do DNOCS, em Fortaleza, com microalgas de água doce, para testá-las nas larviculturas de peixe. Estamos com dificuldades de arranjar Cepas, só conseguimos as de águas marinhas. Será que sabem aonde podemos consegui-las? Se tiverem algum contato, por favor, nos enviem o telefone, ficaremos imensamente gratos. Aguardo notícias!
De: Ricardo Y. Tsukamoto
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Assunto: Re: Cepa de microalgas
Prezada Sandra, nas larviculturas de água doce, o que geralmente se utiliza é a famosa “água verde”. A água verde é produzida pela adição de nutrientes (fertilizante agrícola ou peixe moído) à água comum, deixando proliferarem as microalgas nativas do local. Se você desejar acelerar o processo de colonização pelas algas, pode adicionar um inóculo de água verde coletada em viveiros de piscicultura ou em lagoas de tratamento de esgoto (tecnicamente conhecidas como “lagoas de estabilização”). Esta técnica de água verde é muito simples e eficaz, pois trabalha com as espécies naturalmente aclimatadas para as condições ambientais da região. Normalmente forma um consórcio de algas flageladas (Euglena, Chlamydomonas, e outras), algas não móteis (Chlorella e outras) e diatomáceas. Além da praticidade, uma grande vantagem da água verde com numerosas espécies de algas é o equilíbrio nutricional adequado para os animais que se alimentam deste fitoplâncton (rotíferos, cladóceros, moluscos). Cada animal tem a sua necessidade nutricional específica, que não conhecemos, de modo que alimentá-los com várias algas é uma garantia de suprir tal necessidade. Outro fator importante é a existência também de uma especificidade no tamanho, forma e consistência da alga que pode ser consumida por cada tipo de animal. Com várias algas disponíveis, o animal pode escolher o que deseja. Em contraste, uma cultura pura (ou unialgal) de microalga é bem mais problemática. A cultura só está pura dentro do tubo de ensaio inicial. A partir daí, com as repicagens para aumentar o volume, a cultura acaba facilmente contaminada por outras algas (que chegam como esporos pelo ar). Quando vai para a escala de aquário, caixa d´água ou tanque, o controle se torna quase impossível. Mas se você precisa de uma cultura de qualquer forma, a Epagri em Santa Catarina mantém estoque da espécie Chlorella minutíssima (falar com o Álvaro Graeff). Porém, consulte antes sobre a espécie de animal a ser alimentado com ela, pois o tamanho muito pequeno e a parede celular (“casca”) grossa desta alga impedem o bom aproveitamento por alguns tipos de animais.
De: Douglas Bonanza
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Assunto: Atribuição aos técnicos
Estou implantando um projeto de piscicultura com 12 hectares de lâmina d’água na região de Valença-BA. As pergunta são: precisarei do aval ou de um projeto executado por um técnico ou Engenheiro de Pesca/Aqüicultura, devidamente regulamentado, para conseguir a aprovação das licenças ambientais necessárias para exercer a atividade fim? Se for necessário, alguém me indicaria um profissional locado nas proximidades de Salvador-BA? Obrigado.
De: Ricardo Y. Tsukamoto
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Assunto: Re: Atribuição aos técnicos
Caro Douglas, o licenciamento ambiental é totalmente distinto do projeto de engenharia da sua piscicultura. O licenciamento ambiental consiste em você, empreendedor, demonstrar para o órgão normativo que o impacto ambiental do seu empreendimento não irá ferir as normas ambientais vigentes. O licenciamento é encaminhado pelo empreendedor, mas como normalmente ele não é especialista ambiental, o documento é elaborado por um profissional que se torna o seu responsável técnico. Por isso, o documento de licenciamento ambiental pode ser elaborado por qualquer profissional da área biológica que tenha experiência na área ambiental. Por exemplo, as profissões mais comuns a elaborarem (ou assinarem) tais documentos na área de aqüicultura são o biólogo, ecólogo, engenheiro agrônomo, engenheiro de pesca e engenheiro de aqüicultura. Como os órgãos ambientais dão preferência por documentos assinados por profissionais de nível superior, os técnicos de nível médio ficaram numa posição indefinida. Mais importante que a profissão específica, é essencial que a pessoa encarregada tenha conhecimento real da legislação, experiência e relacionamento cordial com quem vai analisar o documento (no órgão ambiental). Como a análise é em grande parte subjetiva, sem a tranqüilidade do analista, um bom projeto pode ser inviabilizado conforme as circunstâncias. Por isso, procure sondar informalmente na região de Valença, quem tem encaminhado com sucesso este documento, até porque esta região tem hoje os seus conflitos. Vale até pedir uma sugestão ao órgão ambiental. Não sou da Bahia e não conheço ninguém ali que pudesse recomendar. Boa sorte e um grande abraço.
De: Anita R. Valença
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Assunto: Camarão Reversão
Apenas para corrigir o que considero uma injustiça de informação. Não foi a equipe da Tailândia que “descobriu a forma de alterar as características sexuais de camarões machos”. Na realidade, isto já vem sendo pesquisado há muito tempo no mundo inteiro. A primeira pessoa que publicou sobre a importância da glândula androgênica na diferenciação sexual de crustáceos (no meu conhecimento, ainda vou fazer mais levantamento bibliográfico) foi Charniaux-Cotton. Depois dela, Claude Nagamine e equipe no Japão foram os primeiros a ver os efeitos da ablação da glândula androgênica em machos de M. rosenbergii e o efeito da implantação de pedaços da glândula androgênica em fêmeas (masculinização). Antes deles, outros pesquisadores fizeram experimentos com outros crustáceos. Inclusive aqui no Brasil, segundo Prof. Eudes Correia, um grupo de israelenses que trabalhou junto com brasileiros, fez tentativas. E, eu acho que, não por acaso, pesquisadores de Israel publicaram um trabalho semelhante a este da notícia abaixo. Na Índia também estão sendo feitas pesquisas neste sentido, pois lá eles já praticam o cultivo monosexo de machos, só que eles fazem a seleção manual das pós-larvas e descartam as fêmeas (trabalhão e os fazendeiros ainda perdem dinheiro, pois compram Pls que não usam). E ainda existe outro jeito de conseguir prole só de machos em crustáceos, com a hibridização. Na Austrália estão fazendo isto com Cherax (Freshwater crayfish, acho que é um tipo de lagostim de água doce, me corrijam se estiver errada). E também estão pesquisando a reversão de M. rosenbergii na fase larval com 17 alfa metiltestosterona nos EUA. Agora só tá faltando “nóis” aqui! Espero não ter falado demais. A seguir, a notícia: “TAILÂNDIA – Cambio de sexo de camarones para obtener utilidades – La obtención de utilidades provenientes del camarón de agua dulce puede ser un reto serio. Las hembras, que son el 60% de la población, son mucho más pequeñas que los machos, de manera que solamente se venden por un tercio del precio potencial. Pero todo eso puede cambiar: un grupo de jóvenes empresarios ha hallado la manera de eliminar las pequeñas y no muy rendidoras hembras del banco genético del camarón, y reemplazarlas con los de animales de género mixto. Han descubierto la forma de alterar las características sexuales de los camarones macho, removiendo las glándulas androgénicas de manera que se vuelvan “neoféminas”. La próxima generación será de machos totalmente.”
De: Ricardo Y. Tsukamoto
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Assunto: Re: Camarão Reversão
Cara Anita, concordo com você. Ablação e transplante de glândula androgênica no camarão de água doce da Malásia (M. rosenbergii) é tema antigo, que estava em moda duas décadas atrás, no período da minha saudosa juventude na pós graduação no Japão. A notícia sobre os empresários recém-graduados da Tailândia não é científica. Ao contrário, é basicamente publicidade para atrair investidores para o projeto de risco (venture business) deles. E como é negócio de risco, o dinheiro é arrecadado, usado, e se não sobrar nada, ninguém pode reclamar mesmo, pois sabia que envolvia risco. Mas a notícia levanta um aspecto técnico intrigante: em cultivo, o crescimento do gigante-da-Malásia é controlado predominantemente pela dominação social entre os machos – situação em que só um deles fica grande e os outros permanecem pequenos. Existe uma hierarquia absoluta, em que um único macho (alfa, com pinças azuis) domina os outros machos e a população do entorno. Os machos dominados permanecem em duas outras hierarquias subalternas: a dos com pinças laranja (os da reserva) e a dos com pinça transparente (parecida com a das fêmeas, e são os soldados rasos). O macho azul reprime o crescimento dos laranjas e estes dos transparentes. Esta situação de dominação é restaurada mesmo se o macho azul for removido da população. Um macho laranja rapidamente se diferencia em macho azul e retoma a dominação. Por isso, é típico em viveiros comerciais desta espécie, encontrarmos uns poucos indivíduos enormes e os outros pequenos. Também por isso é que os viveiros de gigante-da-Malásia têm que ser despescados todo mês, para retirar os indivíduos grandes e dominantes, e possibilitar que alguns dos outros possam daí crescer. Assim, uma população constituída só de machos não resolve este gargalo básico do cultivo do M. rosenbergii. Esta hierarquia absoluta não seria problema em outras espécies de “camarão” (peneídeos, lagostins), mas nesta espécie é o gargalo principal. Obviamente, se o projeto é lançado na Tailândia, só fará um bom marketing e atrairá investidores, se usar a espécie mais típica e bem conhecida do país. Aguardemos o resultado. O Sérgio Tamassia pode nos lembrar desta notícia daqui a alguns anos. Um grande abraço, Ricardo Y. Tsukamoto.