ou O jeito Catarinense de criar camarão
Por Jomar Carvalho Filho
Há quatro anos, desde que foi introduzido nos viveiros do Estado de Santa Catarina, o camarão marinho L. vannamei não parou de surpreender, apresentando excelentes resultados zootécnicos e econômicos, atraindo investimentos e viabilizando extensas áreas sem uso econômico algum, como é o caso da região lagunar do sul do estado, que nos últimos 250 anos viveu em total estagnação financeira, registrando atualmente os mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) de Santa Catarina.
O vannamei no clima temperado do sul do Brasil quebrou tabus e mostrou que também é possível se obter bons lucros com a sua criação fora das Regiões Norte e Nordeste. Hoje, o jeito catarinense de criar o camarão vannamei já é responsável por grande parte do camarão consumido em importantes mercados como o do Rio de Janeiro e São Paulo, além de já ser exportado, freqüentando disputadas prateleiras fora do país.
A idéia de cultivar camarões marinhos em Santa Catarina não é de hoje, e tampouco surgiu com a popularização do vannamei no Brasil. Nasceu há exatos 18 anos, quando um grupo pioneiro liderado pelo zootecnista Edemar Roberto Andreatta, da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina, iniciou os primeiros trabalhos para desenvolver um pacote tecnológico utilizando as espécies nativas Litopenaeus schmitti (camarão branco) e Farfantepenaeus paulensis e F. brasiliensis (camarões rosa). Entretanto, apesar de todos os esforços, os resultados da engorda desses camarões nos viveiros catarinenses não foram bons o suficiente para dar competitividade às 14 fazendas de produção que foram implantadas.
Em 1998, após o fechamento de vários desses empreendimentos, a UFSC deu início aos primeiros ensaios com o camarão branco do Pacífico – Litopenaeus vannamei, que naquela altura já mostrava a que veio nos viveiros do nordeste. Não tardou e a surpresa veio logo com os primeiros resultados, que não deixaram dúvidas a respeito do rumo que a atividade iria tomar nos quatro anos que se seguiram, culminando com o surpreendente desenvolvimento da atividade nos dias atuais (ver gráfico na pág.37).
O Programa
Os responsáveis pela condução da carcinicultura catarinense sabiam, no entanto, que não bastaria apenas confiar nas excelentes qualidades zootécnicas do vannamei, nem na experiência acumulada, decorrente dos estudos com as espécies nativas, como forma de garantir o rumo seguro que a atividade vem trilhando nos últimos anos no Estado. O marco decisivo do sucesso foi mesmo a elaboração, em 1999, do “Programa de Desenvolvimento do Cultivo de Camarões Marinhos em Santa Catarina”, estrategicamente criado para dar condições para que se desse o atual desenvolvimento da carcinicultura no Estado, como alternativa para o desenvolvimento sócio-econômico da região litorânea. “Há quatro anos, quando o vannamei chegou em Santa Catarina e apresentou esses resultados estupendos, nós não saímos por aí multiplicando fazendas. A primeira coisa que fizemos foi criar um programa”, disse Edemar Andreatta, um dos responsáveis pela elaboração do Programa de Desenvolvimento e um dos Coordenadores do LCM – Laboratório de Cultivo de Camarões da UFSC.
O programa para promover o ordenamento da atividade foi fruto do trabalho conjunto dos técnicos da EPAGRI (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina) e da UFSC, com o apoio de várias parcerias institucionais. “Na sua elaboração, os técnicos levaram em consideração as experiências de outros centros produtores, identificando, dimensionando e planejando as áreas propícias e prioritárias para instalação de empreendimentos, tendo como princípio a proteção ambiental”, disse Elpídio Beltrame, também coordenador do LCM/UFSC.
Todos os esforços e as preocupações valeram a pena, afirma o oceanógrafo Sérgio Winckler da Costa, atual coordenador do Programa Estadual. Em 2002 foram produzidas em Santa Catarina um total de 1.900 toneladas de camarões, fruto do povoamento de 575 hectares de viveiros. Ao fechar o ano de 2002, a área alagada já se estendia a 800 hectares, com 43,4% das propriedades com tamanho abaixo de 10 hectares, outros 47,1% com tamanhos variando de 10 a 30 hectares e o restante acima de 30 hectares. As fazendas pequenas operam em regime de mão de obra familiar e pertencem a pequenos agricultores e pescadores. Segundo Winckler, em 2002, a carcinicultura catarinense promoveu 350 empregos diretos e as previsões são de um aumento na oferta de postos de trabalho, já que as previsões também apontam para um total de 1.200 hectares de viveiros em produção, em outubro de 2003.
Yakult
Em Santa Catarina, a Yakult não é apenas a marca de uma tradicional bebida láctea. Para os carcinicultores catarinenses o nome Yakult ficou também incorporado ao nome da única fazenda experimental totalmente dedicada à pesquisa e treinamento de carcinicultores em operação no país. Em 1999 a empresa Yakult doou a UFSC a sua fazenda de cultivo de camarões, localizada no município de Araquari, no norte do Estado, que na ocasião possuía 22 hectares de viveiros. Uma operação casada feita logo a seguir à doação, permitiu que a UFSC contasse com a valiosa colaboração do BMLP – Brazilian Mariculture Linkage Program, para a reforma das instalações e dos viveiros, permitindo que hoje, passados três anos da doação, a fazenda seja uma referência para a indústria do camarão cultivado catarinense. Foi nas suas dependências que os especialistas puderam fazer todos os ajustes de tecnologia necessários ao cultivo do vannamei, para que tudo funcionasse bem no dia-a-dia do campo. Atualmente são 24 hectares de viveiros em operação, seis deles dedicados a produção de matrizes e os restantes usados para a pesquisa e produção.
Os viveiros produtores de matrizes já permitiram que o estado deixasse, há dois anos, de depender das pós-larvas ou mesmo dos náuplios vindos dos laboratórios do nordeste. Garantem, dessa forma, um plantel que a cada dia se adapta melhor às condições da região temperada.
Os 18 hectares restantes da Yakult/UFSC são dedicados à pesquisa e treinamento dos alunos dos cursos de pós-graduação em aqüicultura e engenharia da aqüicultura mantidos pela UFSC. As despescas iniciadas em outubro de 1999, no final de 2002 somavam 212 toneladas e geraram uma receita capaz de cobrir, entre outras despesas, o total funcionamento da fazenda, os investimentos que nela têm sido necessários e o programa de treinamento oferecido aos técnicos e produtores, não só catarinenses, mas de outros estados e até do exterior, que lá se preparam para o dia-a-dia no campo.
Na Yakult/UFSC já foram realizados os experimentos de campo de quatro teses de mestrado, das quais três focaram a importância do bom manejo para a qualidade dos efluentes de uma fazenda de camarão. Outra tese de doutorado está sendo realizada na fazenda com estudos na área da genética desses animais.
Pelo programa de treinamento já passaram 135 pessoas, incluindo a maior parte dos proprietários e funcionários chaves das fazendas em operação no estado. “Sempre que alguém está interessado no cultivo de camarão, vai procurar a Yakult/UFSC e se desejar, recebe um treinamento individualizado. Se o interesse desta pessoa é construir viveiros, no treinamento ele verá em detalhes como isso deve ser feito, vai aprender como se constrói e como funciona uma comporta, vai conhecer também toda a parte hidráulica, e tudo o mais”, diz Walter Seiffert, responsável pela coordenação dos trabalhos da Yakult/UFSC. E complementa: “é difícil encontrar alguém que vai entrar no negócio que não queira vir para Yakult/UFSC receber um treinamento.
O que percebemos é que ao fim ele está mais preparado para conversar com os técnicos. É interessante também notar que grande parte dos que vão entrar na atividade, e recebem o treinamento, sentem mais do que nunca, a necessidade de ter um técnico treinado para auxiliá-lo. Percebemos que eles sentem a necessidade e querem entender mais sobre a atividade para conversar com o seu técnico e, é claro, também entender melhor a atividade em que estão se iniciando. Ele descobre no dia-a-dia do treinamento, que pode durar até três meses, que não basta apenas soltar os camarões e dar ração, e isso já é muito importante” afirma Seiffert. A Yakult/UFSC tem cursos específicos, como o de arraçoadores. Os operadores de fazendas fazem treinamento individualizado e hoje não existe uma fazenda sequer em Santa Catarina que não opere com o sistema de bandejas.
Pós Larvas ISO 14001
Não é de hoje que o Laboratório de Camarões Marinhos da UFSC (LCM) produz pós-larvas para abastecer os produtores catarinenses. A experiência obtida nos últimos 18 anos com as espécies nativas de camarões, tornou muito fácil a tarefa de produzir as pós-larvas do vannamei. O LCM, no âmbito do “Programa de Desenvolvimento do Cultivo de Camarões Marinhos em Santa Catarina”, além de planejamento, treinamento de pessoal em todos os níveis e formulação de projetos, ficou também com a responsabilidade pela produção de pós-larvas nesta, que é conhecida como a primeira fase de desenvolvimento da indústria. Em 2002, o LCM produziu 450 milhões de pós-larvas e as estimativas apontam uma demanda de 700 milhões já para 2003, que deverá ser suprida também com a entrada em funcionamento dos dois primeiros laboratórios construídos pela iniciativa privada no estado. Projetados pelos técnicos do LCM, esses laboratórios já se encontram em fase de licenciamento ambiental e seu início de funcionamento é muito esperado pelos produtores para que não haja problemas de abastecimento de pós-larvas para povoar as próximas safras.
Uma novidade do LCM para 2003 fica por conta da sua certificação com a ISO 14001. Trata-se de uma norma que rege a questão ambiental no que se refere a qualidade, preservação e proteção do meio ambiente. O trabalho para isso já está quase concluído e espera-se que em março próximo o LCM esteja pronto para receber os auditores externos para ser certificado. A certificação ISO 14001 atende a legislação ambiental e controle de qualidade, dando um crédito extra ao material biológico que sai do LCM, se traduzindo num ganho direto para o produtor e para a atividade como um todo. A longo prazo, diz Elpídio Beltrame, nós poderemos chegar até o camarão orgânico. Com a certificação ISO 14001 o LCM reafirma o seu compromisso com o desenvolvimento sustentável da atividade.
O LCM comercializa PL20 (pós-larvas com 20 dias de vida após a metamorfose para estágio pós-larval), ao contrário dos laboratórios do nordeste que as vendem no estágio PL10. O preço de venda do milheiro das PL20, incluindo o frete até os viveiros dos produtores, é de R$ 11,00. Parte desse valor (3%) vai para o “fundo de larva”, que é dividido igualmente entre a ACCC – Associação Catarinense dos Criadores de Camarões e o Programa Estadual. Somente no ano 2002 foram arrecadados R$ 100 mil, utilizados, entre outras coisas, para a realização de cursos de capacitação técnica, compra de equipamentos de monitoramento para serem utilizados no campo pelos técnicos que prestam assistência técnica aos produtores, pagamento de bolsistas, manutenção de veículos, etc.
Safras
Para obtenção das duas safras anuais, um dos povoamentos é feito em agosto, com despesca em dezembro, e o outro em janeiro com despescas feitas até maio. Os 250 quilômetros que separam a região de Laguna, no sul do estado, das fazendas no norte do estado, determinam um aumento de 5o C na temperatura média da água e permitem que alguns produtores no norte já obtenham uma terceira safra (safrinha).
Seguindo as determinações do Programa Estadual, as densidade de povoamento não podem ultrapassar os 30 camarões por m2. Nessas condições, a sobrevivência média nos viveiros catarinenses é de 70%, obtendo camarões de 12 a 14 gramas a um custo médio final de produção de R$ 5,00.
Os preços de venda variam segundo vários critérios e ocasiões. Na primeira safra de 2002, o preço de venda no mercado interno oscilou entre R$ 8,50 a 9,00/kg. Na segunda safra, iniciada em dezembro a expectativa de venda no mercado interno, para intermediários, é de R$ 10,00 a R$ 11,00/kg, apesar de alguns produtores já terem vendido, nas proximidades das festas de final de ano, por até R$ 14,00/kg.
As parcerias com a indústria de processamento começam, no entanto, a se estreitar. Além da Leardini, até então a única empresa a processar o camarão catarinense, outras empresas têm mostrado interesse na aquisição desses camarões, de olho nos bons volumes esperados para as próximas safras. O preço médio de venda para a indústria tem sido ao redor de R$ 9,00.
Meio Ambiente
A presença de terrenos descampados, sem Mata Atlântica e sem mangue, em estuários onde a pecuária e a agricultura são poucos competitivos ou inexistentes, por isso mesmo de baixo valor econômico e na maioria das vezes com o proprietário nela habitando, foi decisiva para o pontapé inicial da carcinicultura no estado. Posteriormente os investidores passaram a adquirir essas terras, trazendo hoje para Santa Catarina gente de outros estados interessados em entrar na atividade.
Como resultado de um consenso entre os gestores do Programa Estadual e os produtores, a atividade desde o seu início foi marcada pela grande preocupação ambiental, de forma que todas as exigências da recém publicada Resolução CONAMA no. 312 há muito já faziam parte do dia-a-dia das fazendas catarinenses, a começar pelo fato de todas elas terem sido povoadas apenas após terem obtido a Licenciamento Ambiental.
Apesar disso, e talvez movido pelos acontecimentos registrados no Rio Grande do Norte, a atividade em Santa Catarina vem sofrendo ataques por parte de grupos ambientalistas. É curioso, diz Edemar Andratta, como há um tratamento diferencial para os criadores de camarões, onde existem exigências nunca vista para nenhuma atividade agro-pastoril. Na região de Laguna, por exemplo, se alguém quiser implantar 400 hectares de arroz não será exigido nada, ao contrário daquele que quiser implantar somente dois hectares de viveiros de camarões, diz o Coordenador do LCM.
Em Santa Catarina, o camarão não derrubou sequer um pé de mangue. E completa Andreatta, “a nossa preocupação, nos levou a trabalhar desde o início, todo o tempo junto com os órgãos ambientais locais. Se soubéssemos que alguém estava construindo viveiros sem a Licença, nós éramos os primeiros a denunciar. Nunca vendemos um saco de pós-larvas para produtor que não tivesse a Licença Ambiental. Da mesma forma exigimos que as densidades não ultrapassem os 25-30 camarões por m2. O uso das bandejas é obrigatório e todas as fazendas catarinenses possuem sistema de recirculação de água. Após as despescas os viveiros estão limpos e é possível entrar em todos eles, a pé ou com máquina, e não encontraremos lama nem cheiro de podre. A preocupação com os efluentes nos levou a trabalhar assim. Sei que se trabalharmos de forma organizada e continuarmos com os critérios ambientais que nós já vínhamos obedecendo desde o início, teremos condições de continuar a desenvolver uma indústria de forma sadia, promissora, geradora de muitos empregos e divisas. Não há razões para estarmos sendo mal interpretados pelo Ibama, por exemplo: um órgão normatizador, não pode ser a favor nem contra. Ele tem que avaliar os problemas reais da coisa, desabafa Andreatta.