O Futuro da Piscicultura Industrial com Peixes Carnívoros no Brasil

Perspectivas da Aqüicultura à Luz dos Estoques Mundiais de Farinhas e Óleos de Peixe

Autor: Fernando Kubitza, Ph.D*


Nos dias 1 a 4 de junho os mais recentes avanços na nutrição e alimentação de peixes e crustáceos foram apresentados e discutidos no VIII Simpósio Internacional de Nutrição e Alimentação de Peixes, em Las Palmas, Espanha. O evento reuniu mais de 200 pesquisadores e técnicos de diversos países. Expoentes como o Dr. Takeuchi Watanabe (Japão), os norte-americanos Dr. Ronald Hardy, Dr. Robert Wilson, Dr. John Halver and Dr. Delbert Gatlin (USA), Dr. John Sargent (Reino Unido) and Dr. Albert Tacon (FAO, Itália) estiveram presentes. Entre eles alguns brasileiros, como o Dr. Fernando Kubitza (Projeto Pacu/Agropeixe Ltda.), Sílvio Romero Coelho (Mogiana de Alimentos), Ronaldo Cavalli (Professor da Universidade do Rio Grande do Sul – URGS – e aluno do programa de doutoramento em aquicultura pela Universidade de Gent, Bélgica); Roberto Mioso (aluno do programa de doutoramento em Maricultura pela Universidade de Las Palmas de Grã Canária/Instituto Canário de Ciências Marinhas, Espanha) e Rodrigo Ozório (aluno do curso de doutoramento do Instituto de Ciências Animais da Universidade de Agricultura de Wageningen, Holanda). Diversos temas foram abordados na forma de trabalhos científicos e debates entre os participantes, entre eles: 1) nutrição de reprodutores e pós-larvas de peixes e crustáceos; 2) interação nutrição-saúde dos organismos aquáticos; 3) energia e suas relações com o crescimento e composição corporal dos peixes; entre outros.

Durante o simpósio foram feitas especulações sobre o futuro da aquacultura mundial à luz da suficiência da oferta de farinhas e óleos de peixes no próximo milênio. Pesquisadores e técnicos de indústrias européias de rações de peixes, como a espanhola ProAcqua/Provimi (empresa do grupo Eridania Béghin-Say, acionista majoritário da brasileira Nutron Alimentos Ltda.) e a norueguesa NUTRECO, priorizaram a necessidade de avaliar fontes alternativas de proteína e lipídios na susbstituição de farinhas e óleos de peixes em rações para salmonídeos. Mesmo com opiniões divididas sobre o assunto, pareceu haver consenso nos seguintes pontos: a) captura de peixes tradicionalmente usados para fabricação de farinhas e extração de óleo está no limite; b) a demanda por alguns destes peixes, como exemplo a sardinha, para consumo humano direto pode reduzir a produção de farinhas e óleos; c) o maior rigor na regulamentação e fiscalização sobre a captura e o descarte de peixes sem valor comercial, deve forçar a utilização dos mesmos na produção de farinhas e óleos, abrindo boas perspectivas para incremento futuro nos estoques destes insumos; d) há uma tendência de redução no uso de farinhas e óleos de peixes nas rações de organismos aquáticos (com algumas exceções), devido a possibilidade de substituição parcial ou total destes insumos por farelos protéicos e óleos de origem vegetal.

Estoques mundiais de farinhas e óleos de peixes

A produção mundial de farinha de peixe não demonstrou tendência de redução, oscilando de 6 a 7 milhões de toneladas/ano entre 1986 a 1995. No mesmo período houve uma redução de 1,6 para 1,1 milhões de toneladas na oferta mundial de óleo de peixe, explicada tanto pelo declínio na captura de alguns peixes marinhos usados para extração de óleo como pela maior demanda destes peixes para consumo humano direto.

Consumo de farinhas e óleos de peixe na aquicultura

De acordo com informações da Associação Internacional dos Fabricantes de Farinhas e Óleos de Peixe, em 1994 cerca de 1,1 milhões de toneladas de farinha de peixe (17% da produção mundial) e 380 mil toneladas de óleo de peixe (25% da produção mundial) foram empregadas em rações para organismos aquáticos. As rações de salmonídeos utilizaram 48% da farinhas e 68% do óleo de peixe consumido pela aquicultura. Estes números sobem para 66 e 79% quando se considera o grupo dos peixes carnívoros.

Demanda de farinhas e óleos de peixe na aquicultura

De acordo com as estatísticas da FAO, o crescimento anual médio na produção de peixes e outros organismos aquáticos no período de 1990 a 1994 foi ligeiramente superior a 20%, saltando de 12 milhões para 26 milhões de toneladas anuais, com 50% desta produção oriunda da piscicultura. De 1993 a 1994 este crescimento foi de apenas 11%. A Associação dos Fabricante de Farinhas e Óleos de Peixe estimaram que em 1994 cerca de 3,6 milhões de toneladas de ração foram consumidas na aquicultura e que no ano 2.010 cerca de 8,7 milhões de toneladas de ração deverão ser utilizadas no cultivo de organismos aquáticos, ou seja um aumento de 142% em relação a 1994. A demanda por farinha e óleos de peixe não deve crescer nesta mesma proporção visto as perspectivas futuras de sua substituição parcial por ingredientes alternativos. A expectativa é de que cerca de 1,5 milhões de toneladas de farinha e 1,1 milhões de toneladas de óleo de peixe sejam necessárias para a produção de rações para a aquicultura em 2.010.

A previsão mais otimista daquela entidade é de que a produção anual de farinha e óleo de peixes pode ser dobrada no futuro com o aproveitamento dos descartes de peixes sem valor comercial, passando de 6 para 12 milhões e de 1 para 2 milhões de toneladas anuais, respectivamente. Desta forma, a demanda por farinha de peixe deverá ser suprida sem grandes problemas. Com relação ao óleo de peixe, mais de 50% da demanda futura poderá ser substituída por óleos vegetais ou gorduras animais, fazendo com que a demanda possa chegar a valores abaixo de 500 mil toneladas ano, o que seria perfeitamente possível de ser atendida.

Carnívoros vs. onívoros/herbívoros e as espécies para piscicultura industrial no Brasil

O Dr. Albert Tacon em trabalho entitulado “Feeding Tomorrow’s Fish” (“Alimentando os Peixes do Amanhã”) calcula que os peixes onívoros /herbívoros perfazem 89% e os carnívoros 11% da produção mundial de peixes cultivados. Em contraste, os peixes carnívoros consomem 90% da farinha de peixe usada no preparo de rações para peixes, contra apenas 10% para os onívoros/ herbívoros. Comparações deste tipo sempre vêm à luz quando o assunto é a suficiência dos estoques mundiais de farinha de peixe e óleo de peixe. A piscicultura no Brasil vem crescendo a largos passos nesta última década e deverá alcançar destacada posição entre os principais países produtores de pescado cultivado no próximo milênio. A produção de tilápias deverá se consolidar como esteio de uma agro-indústria de pescado, principalmente em Goiás, Minas e Bahia ao longo do Vale do Rio São Francisco, no Espírito Santo, além das boas perspectivas de produção deste peixe em quase todos os estados do nordeste do país. Dificilmente os peixes herbívoros/onívoros nacionais (pacu, tambaqui e seus híbridos; a piraputanga e a matrinxã; o piauçú entre outros) tomarão o lugar da tilápia no comando desta piscicultura industrial. A produção destes peixes deverá se limitar a atender a demanda dos pesque-pague em vários estados. Exceções devem ser feitas quando se considera alguns mercados regionais, como no caso da piraputanga no Mato Grosso e do pacu no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O tambaqui e a matrinxã também são os grandes preferidos nos mercados locais na Amazônia, por sinal um mercado bastante atrativo visto o grande consumo de pescado per capita (acima de 50kg/habitante/ano) e o grande contingente humano concentrado em poucas cidades da região.

Dentre os peixes nacionais, os “carnívoros” pintado e cachara sem dúvida são os peixes de água doce de maior potencial de mercado e cultivo em todo o Brasil. O cultivo industrial destes peixes vêm se tornando realidade no Mato Grosso do Sul e apresenta grande potencial no Mato Grosso e Goiás e em todo o vale do Rio São Francisco. O cultivo de surubins também será uma boa alternativa para viabilizar pisciculturas em terras mais valorizadas da região sul e sudeste, substituindo espécies com menor retorno financeiro por área de produção. No grupo dos carnívoros ainda se destaca o gigante pirarucu, sério candidato ao cultivo industrial, principalmente na Amazônia onde desfruta de grande mercado.

O desafio aos nutricionistas e fabricantes de rações

Frente a estas considerações, não é difícil deslumbrar que a piscicultura industrial no Brasil terá seu foco concentrado sobre uma constelação com poucas estrelas. Numa das pontas a exótica tilápia com tecnologia de produção já disponível nos mais diferentes idiomas. Na outra, os carnívoros pintado, cachara e, talvez o pirarucu, orfãos dos pesquisadores e com quase tudo a ser estudado e definido. Alimentar estes carnívoros em proporções industriais será um grande desafio no futuro, principalmente devido a insipiência da oferta e qualidade das farinhas de peixes no Brasil.

Os carnívoros tropicais talvez sejam menos dependentes do óleo de peixe (ou de ácidos graxos poli-insaturados) comparados aos carnívoros marinhos ou de clima temperado, o que já é uma considerável vantagem. Os nutricionistas e indústrias de rações têm um papel de extrema importância para viabilizar o cultivo industrial dos peixes carnívoros no Brasil: antecipar a necessidade de redução da dependência por farinhas de origem animal (principalmente as farinhas de pescado) nas rações destes carnívoros. Desta forma será possível desenvolver uma piscicultura industrial mais eficiente, a medida em que transforma proteína vegetal em pescado, e menos competitiva com a alimentação humana e com a demanda de insumos da aquicultura industrial no mundo. Para alcançar esta meta será necessário, entre muitos outros esforços, avaliar: 1) a relação energia e proteína nas rações; 2) a substituição parcial ou total de farinhas animais por farelos protéicos vegetais e seus efeitos sobre a composição corporal/sensorial do peixe produzido; 3) a necessidade de correção de desbalanços em aminoácidos essenciais, energia digestível e minerais nestas rações; 4) estratégias de processamento de ingredientes e rações para aumentar o valor nutritivo dos farelos vegetais; 5) o uso de aditivos palatabilizantes para melhorar o consumo das rações baseadas em farelos vegetais. Este é o desafio. Grande, mas não impossível à luz de alguns resultados já divulgados para outros peixes carnívoros cultivados no mundo.


*Autor: Fernando Kubitza, Ph.D., Especialista em Nutrição e Produção de Peixes – Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento do Projeto Pacu/Agropeixe. E-mail: [email protected]