Por: Fernando Kubitza, Ph.D.
Especialista em Nutrição e Produção de Peixes
Os melhores preços de venda, a comercialização de pequenos volumes de peixes a intervalos irregulares e a demanda por uma grande variedade de espécies foram os principais atrativos para a venda de peixes vivos aos pesque-pagues, principal canal de comercialização do pescado cultivado nesta última década. No entanto, os piscicultores começam a questionar as reais vantagens no comércio de peixes vivos, principalmente aqueles que se encontram distantes dos pesqueiros. O maior custo do transporte e a tendência de redução nos preços pagos pelo peixe vivo, os riscos de perdas durante e após o transporte, a inadimplência de muitos pesque-pagues e a limitação quanto ao manuseio, transporte e pesca de algumas espécies nos meses de inverno, passam a ser considerados com maior atenção. A impressão geral da maioria dos produtores de alevinos, fornecedores de ração e piscicultores de que, nesta última safra, os negócios ficaram bem aquém do esperado, somada à redução nos preços pagos pelos peixes vivos, é um claro sinal de que a oferta de peixe cultivado começa a superar a demanda dos pesque-pagues.
O início do próximo milênio deverá marcar a fase industrial da piscicultura brasileira, abrindo novas perspectivas de mercado para o pescado cultivado e todos os setores de suporte a esta indústria (alevinos, rações, equipamentos e embalagens, projetos e assistência técnica, capacitação de recursos humanos e pesquisa, dentre muitos outros). A industrialização deverá se concentrar sobre um número reduzido de espécies e exigirá uma maior profissionalização do setor, visto que demandará o fornecimento contínuo de matéria-prima de qualidade e preço competitivos. O grande desafio da indústria será o de promover o consumo de pescado em nosso país, através de um marketing eficaz e uma adequada oferta de produtos confiáveis a preços competitivos, apagando as percepções negativas de muitos consumidores em relação ao peixe de piscicultura, dentre muitas: a) peixes de piscicultura são produzidos com o uso de dejetos animais; b) possuem muita gordura; c) apresentam gosto de barro; d) alguns peixes carregam uma deturpada imagem de terem muito espinho, como exemplo a tilápia séria candidata a carro-chefe da indústria. Os consumidores, mal informados, sentem-se inseguros na avaliação da qualidade do peixe na hora da compra. O descaso da grande maioria dos supermercados e peixarias no manuseio dos produtos de pescado contribuem ainda mais com esta insegurança.
Até o momento os piscicultores pouco se preocuparam com a qualidade do peixe produzido, pois o grande mercado dos pesque-pagues pouco exigiu neste quesito, a não ser a garantia de entrega do peixe vivo, em boas condições, e visualmente isentos de doenças e parasitoses. No entanto, a indústria estabelecerá novos parâmetros, contemplando as exigências do mercado varejista e dos consumidores quanto a qualidade dos produtos de pescado, em especial referência ao frescor, padronização da apresentação do produto quanto ao sabor, textura, coloração e embalagens, entre outros itens. Desta forma, a indústria fixará padrões de qualidade da matéria-prima a ser processada, penalizando os piscicultores pelo fornecimento de peixes de frescor e tamanho fora do padrão, com excessiva deposição de gordura nas vísceras e com mal sabor (“off-flavor”). Isso exigirá uma maior profissionalização dos produtores e atenção às práticas de manejo. Antecipando algumas das futuras preocupações da piscicultura industrial no Brasil, este artigo discute os principais fatores que interferem com a qualidade do peixe cultivado.
Inadequado sabor ou odor (“off-flavor”)
Os peixes podem adquirir sabores ou odores indesejáveis (“off-flavor”), através da absorção de certas substâncias presentes na água de cultivo ou em alguns tipos de ingredientes usados nas rações.
Rações e “off-flavor”. O mau sabor em peixes associado ao uso de rações comerciais é raramente observado. A maioria dos grãos, farelos e farinhas de origem animal e vegetal usados nas rações não alteram o sabor/odor do filé dos peixes de maneira detectável pelos consumidores (Smith et al 1988; Johnsen e Dupree 1991; Kaushik et al 1995; Skonberg et al. 1998), embora possam causar diferenças na pigmentação (coloração) e textura da carne, dependendo do tipo de ingrediente utilizado e do seu nível de inclusão nas rações.
Ambiente e “off-flavor”. Em particular, a ocorrência de “off-flavor” é mais frequente em peixes cultivados intensivamente em viveiros, onde os altos níveis de arraçoamento, e o consequente acúmulo de nutrientes, favorece a intensa proliferação de algas cianofíceas (notadamente as do gênero Oscillatoria, Anabaena e Simploca, dentre outras) e fungos actinomicetos. Estes organismos são responsáveis pela produção de geosmina (GEO), associada ao gosto ou odor de terra ou barro, e metil-isoborneol (MIB), responsável pelo gosto ou odor de mofo (odor de porão ou livro mofado) em peixes de piscicultura. Peixes cultivados em raceways ou tanques-rede também podem apresentar “off-flavor”, dependendo da qualidade da água nestes sistemas de produção. Maus sabores causados pela absorção de GEO e MIB são os mais predominantes em piscicultura intensiva. Embora menos frequentes, outros tipos de maus sabores também podem ocorrer. Para maiores informações sobre “off-flavor” em peixes, o leitor pode consultar as revisões de Tucker e Martim (1991) e Bett (1997).
Estratégias para prevenção e controle do “off-flavor”. Ainda não foram identificadas estratégias eficazes para evitar a ocorrência de off-flavor causado por GEO e MIB nos peixes. No entanto, os produtores de bagre-do-canal nos Estados Unidos adotam as seguintes práticas:
· Sistema de produção com múltiplas colheitas e estocagem, possibilitando várias opções de viveiros para colheita seletiva num mesmo momento.
· Avaliação sensorial (degustação) de amostras de peixes dos viveiros em condições de colheita. A autorização final para despesca depende do aval dos degustadores dos frigoríficos.
· Colheita imediata dos viveiros com peixes sem off-flavor. Devido a característica transitória do off-flavor em peixes, a despesca em viveiros com peixes com mau sabor é adiada até o restabelecimento do adequado sabor nos peixes.
· O controle da população de algas cianofíceas com o uso de algicidas a base de cobre, como exemplo o sulfato de cobre. Estes são os únicos algicidas autorizados pela agência norte americana de proteção ambiental – USEPA -para uso em peixes destinados à mesa.
A identificação de algicidas com ação seletiva, permitindo eliminar algas cianofíceas, poupando outras algas benéficas, como as clorofíceas (algas verdes), vem sendo objeto de estudos mais recentes visando o controle de off-flavor na indústria do bagre-do-canal (Schrader et al. 1998)
Depuração. Peixes expostos a GEO e MIB adquirem “off-flavor” em poucas horas. No entanto, a eliminação destes compostos pode levar vários dias ou mesmo semanas. Peixes com “off-flavor” podem ser depurados em tanques recebendo fluxo contínuo de água limpa. O uso de tanques de depuração geralmente é restrito aos frigoríficos de pequeno porte devido a necessidade de um considerável volume de água para a depuração de grandes quantidades de peixes. A degustação prévia dos peixes prontos para a colheita pode poupar a necessidade de depuração caso as amostras apresentem adequado sabor. O tempo necessário para a depuração de peixes com “off-flavor” depende de diversos fatores, entre muitos a temperatura da água nos tanques de depuração, o teor de gordura dos peixes e a intensidade inicial do “off-flavor”. A eliminação de MIB no bagre-do-canal, até níveis aceitáveis de 0,7mg de MIB/kg de filé, pode demorar 2,5 a 5 dias. Este tempo depende da temperatura da água e do teor de gordura no filé (Tabela 1; Johnsen et al. 1996). GEO e MIB são compostos solúveis em lipídios e sua eliminação pode ser bastante demorada em peixes com muita gordura.
A ocorrência de “off-flavor” em condições de campo pode resultar da ação conjunta de MIB e GEO, além da participação de outros compostos, exigindo um período maior de depuração. Lovell (1983) registrou a necessidade de depuração de 6 a 10 dias, sob temperaturas de 22 a 26°C, para que não mais se detectasse “off-flavor” no bagre do canal. A depuração requer 10 a 15 dias a 16°C. Períodos prolongados de depuração sem que haja alimentação dos peixes podem resultar em significativa perda de peso (Tabela 2).Sob temperaturas de 22 a 26°C o bagre do canal perdeu entre 10-17% de peso comparado a 8-9% a 16°C, até atingir sabor adequado.
Alimentar os peixes durante a depuração aparentemente não interfere com o processo de depuração. No entanto, devido ao estresse durante o manuseio e transporte e ao adensamento nos tanques de depuração, dificilmente o apetite dos peixes é restabelecido antes do término do período de depuração. Devido a grande variedade de fatores que interferem na eliminação de MIB e GEO, é recomendável a degustação frequente dos peixes ao longo da depuração, de forma a evitar que os mesmos permaneçam mais do que o necessário nos tanques de depuração. Uma escala prática para avaliação de “off-flavor” é apresentada na Tabela 3.
Depuração no inverno. Nos meses de inverno a depuração pode ser crítica para espécies pouco tolerantes ao manuseio sob baixas temperaturas, como exemplo as tilápias. Embora o baixo teor de gordura no filé das tilápias possa favorecer a rápida eliminação de compostos associados ao “off-flavor”, o metabolismo reduzido sob baixas temperaturas pode exigir períodos de depuração de uma semana ou mais longos para o restabelecimento do adequado sabor. Desta forma, infecções por fungos e bactérias podem ocorrer antes da depuração ser completada, causando mortalidades e depreciação da imagem do produto, principalmente quando este for comercializado inteiro ou na forma de filé com pele, como no caso de tilápias vermelhas.
Importância econômica do off-flavor. Na indústria do bagre-do-canal nos Estados Unidos, os prejuízos anuais causados pelo “off-flavor” são estimados em US$ 50 milhões. O cálculo destes prejuízos considera o atraso no cronograma de despesca, a redução no crescimento e na eficiência alimentar, e o aumento na mortalidade decorrentes de problemas de qualidade da água e doenças com a retenção dos peixes nos viveiros até passar a condição de “off-flavor”. Estes números não levam em conta a comercialização do produto com mau sabor. Prejuízos adicionais indiretos podem advir do estabelecimento de uma aversão do consumidor ao peixe de piscicultura quando, na ausência de práticas eficazes de monitoramento do off-flavor, lotes com mau sabor são colocados no mercado.
Composição das rações e manejo alimentar
Diversas características das carnes dos peixes cultivados, como exemplo o teor de gordura, o perfil de ácidos graxos, a textura e a coloração dos filés podem ser significativamente influenciadas pela composição das rações e pelo manejo alimentar.
Relação energia: proteína e deposição de gordura corporal
Além da eventual ocorrência de off-flavor, outra característica comumente associada ao peixe cultivado é a textura mais macia da carne, quando comparado a um exemplar da mesma espécie proveniente da pesca. No entanto, o consumidor geralmente não percebe esta diferença, a não ser quando lhe é oferecida a oportunidade de comparação simultânea destes peixes.
Esta diferença em textura de carne pode, em grande parte, ser explicada pelo fato do peixe de piscicultura se exercitar menos, ser abatido mais jovem e receber uma dieta rica em energia, favorecendo uma maior deposição de gordura no filé, comparado ao peixe da natureza.
O balanceamento das rações e as estratégias de manejo alimentar utilizadas em piscicultura intensiva exercem grande influência na deposição de gordura corporal nos peixes. De uma forma geral, a redução no teor protéico, a elevação na relação energia: proteína das rações ou o aumento nos níveis e frequência de alimentação promovem uma maior deposição de gordura na carne e na cavidade abdominal dos peixes. Alguns exemplos são comentados a seguir:
Bagre-do-canal (Tabela 4).O uso de rações com reduzido teor protéico (24 a 26%) e relação energia digestível/proteína (ED/P) ao redor de 10 a 11kcal/g, quando fornecidas à vontade, garantiram índices de crescimento e conversão alimentar comparáveis aos obtidos com rações contendo entre 28 e 38% de proteína e ED/P de 8 a 9,7kcal/g de proteína (Li e Lovell 1992; Robinson e Li 1997). Os resultados destes estudos indicam a possibilidade de redução de até 25% na proteína das rações para o bagre-do-canal alimentados à vontade. No entanto, na atual estratégia de produção do bagre-do-canal adotada nos EUA, os níveis de arraçoamento são restritos para assegurar adequada qualidade da água nos viveiros. Nestas condições, rações com 28 a 32% de proteína são necessárias para melhor desempenho. Adicionalmente, a redução no nível protéico e aumento na relação ED/P para valores acima de 10-11kcal/g resulta em maior acúmulo de gordura na cavidade abdominal e aumento no teor de gordura no filé, podendo comprometer o rendimento de carcaça no processamento.
Tilápias.Tilápia-do-Nilo com peso de 200g apresentaram maior deposição de gordura nas vísceras com o aumento na energia das rações através da adição de óleo (Hanley 1991; Tabela 5). Em contraste com os salmonídeos, a carpa comum e o bagre-do-canal, as tilápias parecem apresentar limitada capacidade de incorporação de gordura no filé. Portanto, o excesso de gordura ou energia das rações é convertido em gordura visceral. Viola e Arieli (1983) registraram um conteúdo de 33 a 41% de gordura nas vísceras de tilápias híbridas de peso próximo a 500g, alimentadas com rações contendo 25% de proteína e energia digestível ao redor de 2.750kcal/kg (ED/PB = 11kcal/g). O peso das vísceras representou entre 8 a 10% do peso corporal de tilápias, o que poderia resultar em quebra de 2,5 a 4% no processamento devido ao excesso de gordura visceral.
Tambaqui e pacu. Tambaquis com 95 a 180g foram alimentados em aquários com rações contendo entre 20 a 60% de proteína e 7 a 28kcal de energia bruta/g de proteína (Tabela 6).O aumento na relação energia/proteína resultou em maior acúmulo de gordura corporal. Melhor crescimento e conversão alimentar foram obtidos usando ração com 40% de PB e 11,4 kcal EB/g PB. Esta mesma tendência foi observada por Eckmann (1987) em alevinos de tambaqui entre 5 a 20 gramas mantidos em aquários (Tabela 6). Carneiro et al. (1994) registrou um aumento de 17 para 44% na gordura corporal do pacu com a redução dos níveis protéicos na ração de 34 para 16% (Tabela 6).
De forma semelhante ao observado com tilápias, o pacu e o tambaqui parecem dotados de grande capacidade de deposição de gordura na cavidade abdominal. Observações de campo feitas em diversas pisciculturas revelam um excessivo acúmulo de gordura nas vísceras, o que pode ser atribuído: a) ao uso de rações com baixos níveis de proteína, prática que, na generalizada percepção dos piscicultores, reduz os custos de produção; b) ao manejo alimentar visando maximizar o crescimento dos peixes, marcado por altos níveis de arraçoamento e fornecimento de múltiplas refeições diárias; c) a possibilidade de que algumas rações comerciais apresentem elevada relação ED/PB.
Os piscicultores devem fazer uma melhor avaliação da viabilidade econômica do uso de rações com níveis de proteína inferiores a 28% para peixes redondos e tilápias destinadas ao processamento, mesmo em condições de cultivo em viveiros com plâncton. A aparente economia na compra de rações com baixo teor protéico pode resultar em menor lucratividade final devido ao crescimento mais lento e aumento no tempo de engorda, redução na eficiência alimentar e maiores perdas durante o processamento em função da maior deposição de gordura nas vísceras.
Truta arco-iris e Salmão do Atlântico. Rações para salmonídeos contém níveis de gordura mais elevados (15 a 30%) comparadas às rações para peixes onívoros tropicais (4 a 10%). Na Europa, rações com alta densidade de nutrientes para o salmão do Atlântico chegam a conter níveis de gordura acima de 30%. Embora não tenha havido benefício no crescimento, o uso de ração com 30% de gordura melhorou ligeiramente a eficiência alimentar e aumentou a retenção de nitrogênio e fósforo, comparada a ração com 22% de gordura, fato positivo na redução do impacto ambiental na salmonicultura (Hillestad et al 1988). O aumento de 22 para 30% na gordura da ração elevou o teor médio de gordura no filé de 13 para 16% e nas vísceras de 36 para 43%. A elevação de 13 para 28% no teor de gordura em rações para produção de truta-arco-íris com 350g apresentou efeitos ainda mais notáveis na deposição de gordura corporal (Tabela 7).
Nível de arraçoamento e deposição de gordura
Há uma crescente tendência do consumidor moderno em reduzir o consumo de gordura animal. Portanto, o elevado teor de gordura nos filés pode prejudicar a imagem do peixe de piscicultura. Além disso, o aumento no nível de gordura pode favorecer o surgimento de odores desagradáveis relacionados ao processo de rancificação das gorduras ao longo do período de armazenamento. O aumento nos níveis de arraçoamento acentua a deposição de gordura corporal em salmão (Storebakken e Austreng 1987a; Hillestad et al 1998), truta arco-íris (Cho et al. 1976; Reinitz 1983; Storebakken e Austreng 1987b) e tilápia-do-Nilo (Pouomogne e Mbongblang 1993; Xie et al 1997), entre outras espécies. Na Tabela 8 são ilustrados exemplos com a tilápia-do-Nilo e a truta arco-íris.
A maioria dos piscicultores no Brasil alimentam os peixes em níveis próximos à saciedade (máximo consumo). Também é comum observar o fornecimento de 3 ou mais refeições ao dia nas fases de engorda. Tal estratégia de alimentação, embora acelere o crescimento dos peixes, pode ser economicamente desfavorável considerando o aumento nos índices de conversão alimentar e na deposição de gordura corporal, notadamente nas vísceras.
Qualidade da gordura depositada e qualidade do filé
O perfil de ácidos graxos (unidades componentes dos lipídios) dos peixes está relacionado com a composição em ácidos graxos dos lipídios (óleos e gorduras) presentes no alimento natural ou nas rações (Stickney e Andrews 1972; Thomassen e Rosjo 1989;Guillou et al. 1995; Robinette et al. 1997). Gorduras de bovinos e suínos são ricas em ácidos graxos saturados de cadeia curta, pouco desejados na alimentação humana devido aos riscos de elevação das taxas de triglicerídeos e colesterol no sangue, podendo aumentar a incidência de problemas coronários. Óleos vegetais, como os óleos de soja, milho, e girassol não apresentam colesterol e são ricos em ácidos graxos insaturados, particularmente o oléico e o linoléico.Óleos de peixes, notadamente os de peixes marinhos, são ricos em ácidos graxos poli-insaturados como exemplo o ácido eicosapentenóico (EPA) e o ácido docosahexenóico (DHA), conhecidos popularmente como ômega-3. A ingestão regular de EPA auxilia na redução da taxa de triglicerídios no sangue e na manutenção da flexibilidade das paredes das artérias coronárias, reduzindo os problemas com artérioesclerose e outras complicações cardíacas no homem relacionadas ao excessivo nível de lipídios na corrente sanguínea. O DHA reduz a ocorrência de arritmia cardíaca em adultos e exerce papel importante na formação de tecidos nervosos, principalmente no cérebro, em recém-nascidos (Ackman 1996). Tais evidências induziram as autoridades ligadas à saúde no Reino Unido a recomendar o consumo de peixe pelo menos duas vezes por semana. Recomendação adicional sugere que em uma destas refeições seja incluído um peixe com elevado teor de gordura, como exemplo a truta, o salmão e a sardinha. Este apelo à saúde pode ser transformado em um favorável apelo de marketing para o consumo de peixes. Na Europa e América do Norte este benefício foi popularmente divulgado como a “dieta do esquimó” e teve reflexo direto no aumento do consumo da carne de pescado em detrimento ao consumo de carnes vermelhas. No Brasil, além de cápsulas contendo óleo de peixe, já se encontra disponível no mercado leite enriquecido com ômega-3. A composição em EPA e DHA (ômega-3) nos filés dos peixes cultivados pode ser aumentada com a adição de óleo de peixes marinhos nas rações, prática corrente na produção de salmão, truta e diversos peixes marinhos devido a exigência nutricional em EPA destes peixes. A adição de elevados níveis de óleo de peixe nas rações conferem aos peixes um acentuado “gosto de peixe”. Embora característico no filé de salmão e de trutas na Europa, o gosto acentuado de peixe pode reduzir a aceitação do filé do bagre-do-canal, tilápias e outros peixes de carne reconhecidas como sendo de sabor pouco acentuado.
Efeitos sobre o aroma e o sabor do filé. A elevação no teor de gordura geralmente aumenta a maciez dos filés. No entanto, dependendo do tipo de ácido graxo depositado e da espécie de peixe em questão, podem ocorrer alterações no aroma e sabor da carne do peixe. Salmão do Atlântico apresentaram odor e sabor menos acentuados quando alimentados com rações nas quais o óleo de peixe foi substituído parcialmente pelo óleo de soja. Peixes que receberam rações com altos níveis de óleo de peixe apresentaram sabor/odor típico de óleo de peixe (Thomassen e Rojo 1989). Em contraste, Boggio et al (1985) não encontrou diferenças no sabor e odor de filés de trutas alimentadas com rações contendo gordura suína ou óleo de peixe. O mesmo foi observado em filés de bagre-do-canal que receberam óleo de peixe ou sebo bovino nas rações (Gibson et al 1977).
Embora benéfico do ponto de vista da saúde do consumidor, o aumento na deposição de ácidos graxos poli-insaturados no filé através da inclusão de altos níveis de óleos de peixes marinhos nas rações, pode conferir excessivo sabor de peixe aos filés, característica indesejável na maioria dos peixes tropicais de água doce. Adicionalmente, a maior susceptibilidade destes ácidos graxos à rancificação pode prejudicar o odor/sabor de filés submetidos ao armazenamento. Lovell (1980) observou acentuado gosto de peixe no bagre-do-canal alimentado com rações contendo 9% de óleo de peixe. Menor inclusão de óleo de peixe (3 e 6% nas rações) não foi prejudicial. Durante o armazenamento congelado, filés de bagre-do-canal alimentados com 9% de óleo de peixe na ração apresentaram maiores índices de rancificação.
A adição de níveis mais elevados de antioxidantes naturais como a vitamina E (a-tocoferol) na ração resulta em maior acúmulo de vitamina E no filé. Tal prática pode ser útil para minimizar a rancificação dos ácidos graxos em filés congelados de bagre-do-canal (O´Keefe e Noble 1978; Gatlin III et al 1992) e de truta arco-íris (Boggio et al 1985; Frigg et al 1990). O correto armazenamento dos filés em embalagens a vácuo impermeáveis ao oxigênio também diminui a rancificação.
Coloração da pele e do filé
Na natureza, a coloração característica do filé e da pele de alguns peixes é conferida através da absorção e deposição de pigmentos (carotenóides) presentes no alimento natural. Sob condições de cultivo intensivo, a disponibilidade de alimento natural pode ser insuficiente, sendo necessária a adição de pigmentos naturais ou sintéticos nas rações para garantir uma pigmentação normal dos filés e da pele dos peixes.
Salmonídeos. Astaxantina é o carotenóide predominante em salmonídeos, conferindo uma coloração rosada-avermelhada ao filé. Outro carotenóide adequado para conferir pigmentação rosada em filés de trutas e salmões é a cantaxantina. No mercado estão disponíveis formas sintéticas destes pigmentos para inclusão nas rações para animais. Rações com 50 a 100mg de astaxantina ou cantaxantina por quilo promovem adequada pigmentação no filé de truta arco-íris (truta “salmonada”) e de salmões.
Tilápia vermelha. Boonyarapatlin e Unprasert (1989) acentuaram a pigmentação da pele de tilápia nilótica vermelha com a inclusão de espirulina, farinha de pétalas de cravo amarelo ou farinha de cabeça de camarão, comparados a uma ração sem adição de pigmentos. Produtores de tilápias vermelhas no Brasil devem avaliar o real benefício de incrementar o apelo visual através de uma maior pigmentação da pele destes peixes, quando comercializados inteiros, eviscerados ou na forma de filé com pele.
Pigmentação indesejada no filé de alguns peixes pode advir do uso excessivo de milho e seus produtos refinados, como o farelo de glúten de milho, nas rações. Tais produtos são ricos em carotenóides, notadamente a luteína e a zeaxantina, responsáveis pela pigmentação amarela e alaranjada da pele das aves e da gema dos ovos. Rações sem limitação na inclusão destes produtos podem conferir coloração amarela ou alaranjada no filé de peixes como o bagre-do-canal (NRC 1993) e os surubins (João Campos – Agropeixe Ltda. comunicação pessoal; Kubitza et al. 1998), tradicionalmente aceitos no mercado como peixes de carne branca.
Manejo pré-processamento e qualidade do pescado
As estratégias de manuseio, adensamento e abate dos peixes destinados ao processamento afetam a qualidade e a vida útil de armazenamento dos produtos de pescado.
“Rigor-mortis” e auto-hidrólise. Peixes submetidos a intenso estresse pré-abate entram e saem do estado de “rigor-mortis” mais rapidamente. O “rigor-mortis” é caracterizado pelo progressivo enrigecimento do corpo do peixe devido a redução nos níveis de ATP (adenosina trifosfato) na musculatura. Num enfoque prático, quanto mais tarde ocorrer e maior for a duração do período de “rigor-mortis”, menores serão as alterações nas características da carne e maior a longevidade do produto após processamento. A fase final do “rigor-mortis” marca o início das reações de auto-hidrólise na carne dos peixes. A auto-hidrólise é promovida por enzimas naturalmente existentes na musculatura dos peixes, como exemplo a catepsina. No caso de peixe não eviscerado, as enzimas do trato digestivo podem acelerar ainda mais a auto-hidrólise. A destruição das células musculares durante a auto-hidrólise resulta na liberação de nutrientes e fluídos celulares, favorecendo uma rápida proliferação de bactérias responsáveis pela degradação da carne. Esta drenagem de nutrientes e fluídos celulares também contribuem para uma redução no valor nutritivo do pescado e no rendimento de carne após o processamento.
Glicogênio e pH da musculatura. Devido ao seu menor teor de glicogênio, as carnes de pescado não apresentam grande redução no pH pós-morte, como observado nas carnes bovinas e de frango. Com a morte do animal, o glicogênio na musculatura é hidrolisado em glicose, que serve como substrato para a formação de ácido lático. O acúmulo de ácido lático leva ao abaixamento do pH na musculatura dos peixes, retardando o desenvolvimento de bactérias e aumentando a vida útil do produto armazenado. Sob condições de estresse, ocorre uma redução nas reservas de glicogênio dos peixes e, consequentemente, menor acúmulo de ácido lático na musculatura. Isto deixa o pH da carne mais próximo da neutralidade, acelerando a ação de enzimas musculares (auto-hidrólise), o desenvolvimento de bactérias e a consequente degradação da carne.
Efeito do estresse antes do abate
Antes de serem abatidos, os peixes são submetidos a estresse durante o manuseio de captura e adensamento em redes ou tanques-rede, em tanques para transporte vivo ou em tanques de depuração. Berg et al (1997) observou que salmões abatidos logo após a captura entravam em estado de “rigor-mortis” entre 19 a 20 horas, enquanto que este tempo foi em torno de 2 a 3 horas para peixes abatidos após manuseio convencional (ou seja, entrada na linha de abate através de bombeamento, paralização com gás carbônico e sangria). Peixes manipulados para medições antes do abate atingiram completo “rigor-mortis” 20 horas após o abate, comparado com 80 horas para peixes abatidos sem manipulação. Efeito semelhante foi relatado por Skjervold et al (1999) em salmões estressados pelo confinamento em tanque-rede a uma densidade de 300kg/m3 versus salmões confinados na densidade de 50kg/m3.
Salmões confinados em tanques antes do abate entraram em “rigor-mortis” mais cedo e apresentaram filé com textura inferior (mais macio) do que peixes que não sofreram estresse de confinamento (Sigholt et al 1997). Huss (1988) compilou dados referente ao início do “rigor mortis” em bacalhau. Peixes abatidos logo após a captura concluiram a fase de rigor-mortis após 20-65 horas, comparados a 72-96 horas para peixes submetidos a um descanso antes do abate.
Após avaliarem diversos indicadores bioquímicos, mensurados no sangue e na musculatura, e o desencadeamento do “rigor-mortis”, Lowe et al (1993) sugeriram que a carne de pargos submetidos a diferentes níveis de estresse de captura era de qualidade inferior e mais susceptível aos processos degradativos durante o armazenamento comparada à carne de pargos não estressados antes do abate.
Efeito da temperatura corporal do peixe
A relação entre a temperatura de armazenamento e o tempo para início do “rigor-mortis” varia de acordo com a espécie de peixe, como compilado por Iwamoto et al (1987). No entanto, parece haver uma relação inversa entre a temperatura de armazenamento e a duração do estado de rigor. Bacalhaus abatidos e mantidos a 0°C saíram da fase de “rigor-mortis” após 20-65 horas comparados a 20-30 horas e 1-2 horas para peixes mantidos entre 10-12°C e 30°C , respectivamente. “Rigor-mortis” mais prolongado também foi observado em linguados armazenados entre 0 a 5°C comparados a peixes armazenados a 10-15°C (Iwamoto et al. 1987). No entanto, peixes estocados a 0°C iniciaram o “rigor-mortis” e alcançaram o estado de máximo rigor em menos tempo comparados a peixes armazenados a 10-15°C.
O abaixamento da temperatura corporal antes do abate desacelera as reações bioquímicas no músculo relacionadas ao desenvolvimento do “rigor-mortis”. Seguindo este fundamento, Skjervold et al (1996) propuseram um novo processo pré-abate para o salmão do Atlântico, denominado “resfriamento vivo”. O “resfriamento vivo” consiste em transferir os peixes vivos para um tanque com água fria, durante um período de 30 a 60 minutos, para que a temperatura muscular fique abaixo de 4°C. A técnica do “resfriamento vivo” prolongou a duração do “rigor mortis” por um período de até 120 horas (Skjervold et al 1999), comparado ao tempo de 45 a 95 horas observados com o manuseio convencional (Berg et al. 1997).
A aplicação de estratégias visando a redução do estresse e um melhor condicionamento dos peixes pré-abate pode encontrar obstáculos operacionais na tradicional indústria pesqueira nacional. No entanto, na indústria do peixe cultivado, tecnologia moderna de manuseio e processamento de pescado permitirão diferenciar ainda mais o padrão de qualidade entre o peixe cultivado e os produtos oriundos da pesca.
Considerações finais
Os futuros empresários da indústria do peixe cultivado devem ter em mente que, o aumento tanto na demanda como na oferta de um produto sempre vem acompanhado de uma maior cobrança em relação à qualidade. Nos dias atuais, a demanda do mercado nacional supera em muito a oferta de pescado, elevando os preços dos produtos da pesca, embora ainda assim a qualidade dos mesmos deixe a desejar. Quem anda faturando com isso? De certo não são os pescadores, sempre mal das pernas e em eterna lamentação. Nem tampouco o beneficiado é o consumidor, principalmente a grande massa que sobrevive de salário mínimo ou da caridade humana e divina. Independente de quem se beneficia com isto, o setor pesqueiro deixa uma imagem bastante negativa aos brasileiros, quer pela má qualidade e altos preços de seus produtos, quer pelo uso de práticas pouco amistosas ao ambiente. E colhe o pior fruto disto tudo, ou seja, a redução contínua dos estoques pesqueiros. O bem remunerado extrativismo da pesca em nosso país estimula a ineficiência e o desperdício, o que pode ser facilmente constatado nas operações dos barcos de pesca, nos entrepostos de pescado, nos balcões de peixarias e supermercados e na indústria da pesca como um todo. Tamanho desperdício, da mesma forma como o descaso das políticas do governo com relação a pesca e agricultura, é inconcebível diante do grande contingente brasileiro que vive na miséria. Com raras exceções, a maioria dos brasileiros esporadicamente vê carne, quanto mais se lembra o que é um peixe no prato.
A piscicultura industrial pode, e precisa, reverter esta imagem negativa da pesca em marketing favorável para os seus produtos. Para isto os empresários do setor devem assumir uma postura mais profissional, consolidada no uso de tecnologia e gerenciamento eficazes, visando produzir qualidade. A piscicultura brasileira ainda tem sido bastante generosa com os seus protagonistas. No entanto, o fechamento de diversos pesque-pagues e pisciculturas, dá um claro sinal de que no próximo milênio a indústria do peixe cultivado não vai permitir ineficiência e despreparo. Pequeno ou grande, atendendo a indústria ou o pesque-pague, se não profissionalizar vai desaparecer.