Os novos horizontes e tendências da aquicultura

Com um crescimento anual em torno de 4,6% entre 2010 e 2020(1), não é novidade que a aquicultura venha se confirmando como o sistema de produção de alimentos de maior crescimento no mundo. Embora a atividade seja fundamental para garantir a segurança alimentar da humanidade, as áreas de cultivo têm ficado escassas e os recursos naturais para fabricação de ração, limitados. Além disso, muitos desafios ambientais e econômicos se apresentam. Por outro lado, inovações importantíssimas estão acontecendo globalmente na aquicultura, e é sobre essas tendências que falo neste artigo. 

Por: 
Marcell Boaventura 
boaventura.marcell@gmail.com
Consultor Independente em 
Negócios e Aquicultura
Por:
Marcell Boaventura
[email protected]
Consultor Independente em
Negócios e Aquicultura

Nutrição

O crescimento da aquicultura depende do aumento na produção de rações. Em 2015, o total de rações produzidas somou 35,5 milhões de toneladas (2), das quais 11% eram farinha de peixe e óleo de peixe. Naquele momento, 70% da farinha de peixe e 73% do óleo de peixe produzidos foram destinados às rações aquícolas (3). Em 2022, o total de rações produzidas para aquicultura já chegou a 54,5 milhões de toneladas (4), um aumento de 53% em 7 anos.

Para crescer, a indústria precisa se libertar da dependência desses ingredientes nas rações. Desta forma, a Organização Internacional de Ingredientes Marinhos (IFFO) criou uma série de indicadores, além dos que são comumente usados, como o Fator de Conversão Alimentar (FCA) e seus derivativos FCA-biológico, FCA-econômico. Os novos indicadores, entre eles a Taxa de Dependência de Peixes Forrageiros (Forage Fish Dependency Ratio ou FFDR) e a relação Fish in: Fish out (FIFO), foram criados para uma melhor compreensão da eficiência do uso de ingredientes marinhos, e são usados como parâmetros de certificação pelas ONGs globais de certificação sustentável, como o Aquaculture Stewardship Council (ASC), Best Aquaculture Practices (BAP), Global Gap, entre outras.  

O FIFO para algumas espécies da aquicultura pode ser visto na Tabela 1.

Tabela 1  – Lista comparativa da evolução da relação FIFO para algumas espécies cultivadas na aquicultura de 2000 a 2020, em kg de sardinha - peixe forrageiro (PF) e em peso úmido utilizado para produzir cada kg de pescado aquícola (PA) em peso úmido  | fonte: IFFO
Tabela 1 – Lista comparativa da evolução da relação FIFO para algumas espécies cultivadas na aquicultura de 2000 a 2020, em kg de sardinha – peixe forrageiro (PF) e em peso úmido utilizado para produzir cada kg de pescado aquícola (PA) em peso úmido | fonte: IFFO

O FIFO indica a quantidade de peixes forrageiros em kg (peso úmido) que se utiliza para produzir cada kg de pescado na aquicultura (peso úmido). Para o cálculo do FIFO, considera-se que cada kg de sardinha oferece um rendimento médio aproximado de 22,5% em farinha e 5% em óleo (7), como descrito em fórmula na Figura 1.

Figura 1  – Base de cálculo do FIFO
Figura 1 – Base de cálculo do FIFO

Esse fator é importante, pois os peixes forrageiros podem ser usados de forma mais eficaz para consumo humano direto. Além do mais, a produção mundial de farinha e óleo de peixe diminuiu 25% entre 1997 e 2015, mantendo-se relativamente estável desde então (5). Em razão disso, farinha e óleo de peixeserão cada vez mais escassos para aplicações na alimentação animal, tornando o uso de substitutos de diversas fontes mais proeminente (6).

No entanto, muitos desses substitutos têm baixo valor proteico, baixa palatabilidade, aminoácidos essenciais em desequilíbrio, fatores antinutricionais e carboidratos em excesso para muitas espécies. Felizmente, avanços significativos têm sido feitos na nutrição de organismos aquáticos, inovações que melhoram a precisão alimentar e promovem uma aquicultura mais sustentável. E aqui listo algumas:

Proteínas e óleos unicelulares – Uma das inovações mais promissoras na nutrição de organismos aquáticos é o uso de proteínas e óleos unicelulares. Esses nutrientes são produzidos a partir de microrganismos como algas e bactérias, oferecendo uma fonte rica em proteínas e ácidos graxos essenciais. Nesse contexto, duas inovações revolucionária são o FeedKind, que é uma rica fonte de proteína para organismos aquáticos produzido a partir da fermentação de microrganismos utilizando gás natural como fonte de carbono, e o óleo ômega-3 da Veramaris, que é um concentrado de EPA e DHA extraído e purificado a partir de algas marinhas. Ambas as soluções são alternativas promissoras ao uso de proteínas e óleos marinhos.

Uso de subprodutos hidrolisados – Farinhas de subprodutos têm sido tradicionalmente utilizadas na alimentação animal. No entanto, quando hidrolisados, esses materiais oferecem uma fonte concentrada de aminoácidos essenciais e compostos bioativos, além de otimizar a absorção, promovendo uma melhora na atratividade, aumento da eficiência alimentar e uma melhora no crescimento. Várias empresas já oferecem hidrolisados proteicos de subprodutos tanto de animais terrestres como de organismos marinhos. Nesse espaço, os hidrolisados de cabeça de camarão têm ganhado destaque, pois mesmo com baixa inclusão em rações de peixes oferecem uma melhora significativa de resultados zootécnicos, sendo também uma alternativa sustentável que soluciona problemas ambientais relacionados ao descarte desses materiais.

Proteínas vegetais fermentadas – O uso de proteínas vegetais como soja, milho e farelo de trigo na alimentação de organismos aquáticos é feito há muito tempo devido a sua disponibilidade e baixo custo. Porém, fatores antinutricionais, além do perfil de aminoácidos, sempre limitaram a inclusão relativa, bem como as espécies em que esses materiais podem ser utilizados. A fermentação de ingredientes e outros produtos vegetais é uma tecnologia inovadora que melhora o perfil de aminoácidos digeríveis e aumenta a biodisponibilidade dos nutrientes para os organismos aquáticos. Essa abordagem melhora a eficiência alimentar e reduz o custo das rações, com bom impacto na performance produtiva.

Há outras inovações na área de nutrição não listadas aqui, mas de modo geral as inovações na nutrição de organismos aquáticos estão transformando a aquicultura, tornando-a mais sustentável, eficiente e responsável. Ao adotar essas tecnologias e utilizar uma nutrição mais precisa, a indústria está posicionada para enfrentar os desafios futuros de expansão da atividade de forma sustentável. 

Eficiência produtiva e econômica

Sabemos que sistemas de recirculação, mesmo sendo uma realidade produtiva ampla e globalmente utilizada em cultivo de peixes, ainda estão por se desenvolver em alguns setores da indústria. As recirculações proporcionam um controle rigoroso dos processos, minimização significativa no risco de doenças e melhor eficiência produtiva, reduzindo o impacto ambiental com menor uso de recursos naturais como água e espaço. Também permite uma melhor automação, o que reduz as perdas decorrentes de falhas humanas, além da diminuição na emissão de resíduos para o ambiente, contribuindo para a sustentabilidade do setor.

A tecnologia de recirculação abriu caminho para as fazendas de aquicultura urbanas, uma tendência importante na produção de pescado. Fazendas urbanas são operações de aquicultura que utilizam sistemas de recirculação para o cultivo de organismos aquáticos próximas aos centros urbanos, como, por exemplo, a fazenda de camarão instalada em Singapura pela Universal Aquaculture (Figura 2). Além de todos os benefícios da recirculação listados acima, essas fazendas agregam outros benefícios estratégicos e comerciais:

Figura 2  – Fazenda de camarão vertical instalada em Singapura 
| foto: Universal Aquaculture
Figura 2 – Fazenda de camarão vertical instalada em Singapura | foto: Universal Aquaculture

A proximidade com o mercado consumidor reduz os custos com logística, além de garantir uma oferta do produto fresco e com melhor qualidade.

Proporciona maior lucratividade, já que a proximidade com o mercado elimina a necessidade do atravessador.

Facilita na captação e retenção de mão de obra de alto padrão, uma vez que os profissionais não têm que se deslocar dos grandes centros para áreas remotas onde as fazendas aquícolas são tradicionalmente instaladas.

Além disso, muitas dessas fazendas urbanas podem se beneficiar de fontes geotermais de calor ou mesmo de calor proveniente de usinas – termoelétricas, por exemplo. Esse conceito não é novo, foi descrito por M. Oiszewski em uma publicação de 1977 no Oak Ridge Nacional Laboratory, “The potential use of power plant reject heat in commercial aquaculture”, mas até hoje esse potencial ainda não foi amplamente explorado. A utilização da recirculação não apenas reduz os custos com eletricidade e produção, mas também oferece uma vantagem significativa em termos de emissões de CO2 e outros gases de efeito estufa. Os gráficos da Figura 3 mostram os custos operacionais da produção de salmão em recirculação, comparados com a produção em gaiolas.

Figura 3 – Custo operacional total estimado por kg de salmão eviscerado em recirculação comparado com a produção em gaiolas, em USD – Utilizando 0,05 USD/kWh, 0,17 USD/kWh na Noruega (8)
Figura 3 – Custo operacional total estimado por kg de salmão eviscerado em recirculação comparado com a produção em gaiolas, em USD – Utilizando 0,05 USD/kWh, 0,17 USD/kWh na Noruega (8)

Transformação digital em aquicultura

 Na área digital, inovações importantes melhoram as práticas de gestão de doenças, facilitam o monitoramento da performance nos cultivos ou mesmo geram modelos que ajudam a gerenciar riscos externos e ambientais de forma precisa e rápida e muito próximo do tempo real.

Aplicativos digitais de acompanhamento em smartphones – São usados para rastrear indicadores de desempenho e os fatores de risco dos sistemas aquícolas nas fazendas e laboratórios, como crescimento, produtividade, uso de insumos, práticas de gestão, epidemiologia, fatores ambientais, eficiência e lucratividade.  Tanto os aplicativos completos de gerenciamento da produção aquícola como módulos específicos já foram adaptados e validados na prática operacional globalmente, e implementados comercialmente em muitas empresas. A Figura 4 mostra um aplicativo de smartphone que utiliza inteligência artificial para avaliação do crescimento e homogeneidade de pós-larvas de camarão, o que era tradicionalmente feito por operadores ao microscópio, um trabalho que tomava muito tempo e que não oferecia segurança, pois o método tradicional tem uma margem de erro muito grande.

Figura 4 – Aplicativo no smartphone para amostragem de pós-larvas de camarão
Figura 4 – Aplicativo no smartphone para amostragem de pós-larvas de camarão

Tecnologia de sequenciamento de nanoporos – Com preparação de amostras de baixo custo e baixo desperdício, essa tecnologia gera dados e diagnósticos completos através do sequenciamento do genoma de patógenos a partir de amostras na fazenda e sem a necessidade de suporte laboratorial. Cria-se um fluxo de trabalho simplificado, incluindo uma ferramenta de identificação armazenada em nuvem que fornece informações quase em tempo real sobre patógenos, apenas necessitando-se de um laptop ou smartphone. A tecnologia oferece diagnósticos seguros antes que as doenças se estabeleçam.  Assim, reduz a necessidade de antibióticos na produção aquícola, o que tem implicações positivas para a saúde humana. Essas soluções de inteligência artificial são informadas por big data cumulativa, mas implementadas localmente, sendo uma ferramenta importante na gestão aquícola mais moderna, e estão alinhadas com o Gerenciamento Progressivo proposto recentemente pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) para melhorar a biossegurança na aquicultura.

Monitoramento via satélite – Algumas empresas estão se especializando no uso de imagens de satélite capazes de rastrear operações de aquicultura, como pode ser visto na Figura 5.  A tecnologia oferece informações valiosas sobre a distribuição espacial e o desempenho evolutivo das operações em todo o mundo. Trabalha com imagens globais em tempo real e a utilização de filtros, gerando informações por meio do processamento de imagens com software e algoritmos em plataformas baseadas em nuvem. Elas podem rastrear atividades em viveiros, identificar enfermidades desde o início do surto, monitorar o desenvolvimento dos ciclos de produção e até mesmo fornecer previsões de produção, tanto em fazendas específicas como em regiões completas em qualquer lugar do planeta. Essas informações podem ser usadas de várias formas para aumentar a assertividade na alocação de recursos, reduzir riscos e melhorar a segurança operacional.

Figura 5 – Imagens de satélite, de áreas de fazenda de camarão, 2018 e 2021 | créditos: SeaWarden
Figura 5 – Imagens de satélite, de áreas de fazenda de camarão, 2018 e 2021 | créditos: SeaWarden

Em suma, as novas tendências tecnológicas na aquicultura estão sempre voltadas para melhorar a eficiência produtiva, reduzir os riscos operacionais e criar caminhos para a expansão sustentável e lucrativa da indústria. A evolução na nutrição já tem tido um impacto muito positivo, mas ainda requer mais pesquisas, especialmente para desenvolver aplicações adequadas a novos materiais. As fazendas urbanas verticais estão gradualmente sendo instaladas próximas aos grandes centros da Europa e da Ásia, utilizando sistemas de recirculação e automação avançados em escala industrial. Por fim, a aplicação de inteligência artificial eleva consideravelmente a confiabilidade das informações para a tomada de decisões na nossa indústria.

Em conjunto, essas soluções possibilitam uma melhor produtividade, um gerenciamento de risco mais eficaz e uma redução do impacto ambiental. Essas tendências são essenciais para o desenvolvimento sustentável do setor, garantindo não apenas uma produção aquícola mais eficiente, econômica e ambientalmente responsável de organismos aquáticos, mas também melhorando a percepção da qualidade do produto e de seu perfil sustentável, fatores fundamentais para atrair investimentos ao setor.