Que vida preservar? Eis a questão

Raúl Malvino Madrid
Coordenador Geral de Aqüicultura
Interino DPA/SARC/MAPA
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A carcinicultura marinha é a atividade da aqüicultura que mais se desenvolve no Brasil, especialmente no Nordeste e é a que melhor vem atendendo os apelos do Governo Federal de aumentar as exportações. De US$ 2,1 milhões em 1998, passou para US$ 14 milhões em 1999 e para US$ 71 milhões em 2000. Espera-se atingir em 2001 a quantia de US$ 120 milhões. Na medida que esta atividade cresce, aumentam as reações contrárias ao seu desenvolvimento por parte dos ambientalistas, ao mesmo tempo que cresce também a demanda de licenças ambientais para a implantação de novos projetos.

O Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA, entidade responsável pelos assuntos ambientais brasileiros, trouxe para si, através da Câmara Técnica da Mata Atlântica a normatização da atividade, criando para tanto, em novembro de 2000, um Grupo de Trabalho para regulamentar o cultivo de camarão marinho. Em março foi realizada a primeira reunião, onde sob a coordenação do Dr. Simão Marrul, do Ministério de Meio Ambiente, foram criados três sub-grupos: planejamento, implantação e operação, os quais tinham um prazo de 180 dias para apresentar suas propostas. Decorrido o prazo, foi realizada uma reunião em Brasília, com a participação de ONGs, Governos Estaduais ligados a meio ambiente, setor produtivo e representantes de diversos Ministérios, onde a partir das sugestões dos três sub-grupos, foi elaborada uma Proposta de Resolução, que primeiro foi apresentada e discutida em Curitiba-PR na reunião da referida Câmara Técnica e, posteriormente, em Brasília. Diante dos posicionamentos contrários a esta Proposta de Resolução por parte de representantes da sociedade civil, foi decidido fazer uma Audiência Pública nos dias 5 e 6 de novembro em Fortaleza-CE, para o recebimento de sugestões relativas à referida Proposta de Resolução.

A partir desses subsídios a Câmara Técnica da Mata Atlântica, que é composta por representantes do Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, Governos da Bahia, Paraná e São Paulo e representantes das ONGs do Nordeste e do Sudeste, vai elaborar uma nova Proposta de Resolução, que será submetida ao Plenário do CONAMA, em reunião a ser realizada em 3 de dezembro próximo.

Entre os 19 artigos da Proposta de Resolução, a discussão está sendo polarizada. Os ambientalistas colocam que além do mangue, onde existe unanimidade para sua conservação total, também deveria incluir-se as áreas de apicum, salgados e outras áreas adjacentes, uma vez que estas pertencem ao ecossistema de manguezais. Ou seja, a discussão não é no sentido de tornar a atividade mais sustentável, mas impedir que a atividade se desenvolva. Os ambientalistas baseiam-se em vários diplomas legais, sendo o principal, o estabelecido no artigo 225 da Constituição de 1988 – “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Entretanto, a Constituição, também no seu artigo 170, menciona “A ordem econômica, fundada na valoração do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: soberania nacional; propriedade privada; função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor; defesa do meio ambiente; redução das desigualdades sociais; busca de pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte”.

A Lei Nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional de Meio Ambiente, menciona no seu artigo 4º item I “A Política Nacional de Meio Ambiente visará à compatibilidade do desenvolvimento econômico social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico”. Ou seja, objetiva o desenvolvimento sustentável.

Como não existe nenhum diploma legal, que explicitamente considere as áreas de apicum e salgados como áreas de preservação permanente, o seu uso para a carcinicultura marinha é legal e não poderia ser diferente, uma vez que tanto os órgãos ambientais federal e estaduais, vem licenciando há anos esta atividade.

Do ponto de vista econômico a viabilidade da carcinicultura é inquestionável. Do ponto de vista social também o é. Neste aspecto, a Região Nordeste, responsável por mais de 97% da produção de camarões cultivados, destaca-se por possuir as melhores vantagens comparativas do Brasil. E é nesta Região que a pobreza se faz presente com maior intensidade. Estudos realizados pela Fundação Getúlio Vargas (outubro/2001), concluíram que mais de 50% da população nordestina é considerada como indigente (Maranhão: 64%), ou seja, com renda inferior a R$ 80,00/mês, que é a quantia mínima necessária para adquirir alimentos que proporcionem as calorias diárias preconizadas pela ONU. Este grau de indigência traz como conseqüência o fato dos nove estados do Nordeste apresentarem a maior taxa de mortalidade infantil do País. Segundo o IBGE, a taxa de mortalidade infantil média brasileira é 3,46%, enquanto a do nordeste é 5,3%. A carcinicultura marinha também se apresenta como uma das atividades do agronegócio que mais gera empregos (aproximadamente 1/ha), perdendo somente para a produção de algumas frutas irrigadas. É ainda, uma das atividades que apresenta os níveis de investimento mais baixos para a geração de 1 emprego: US$ 13.880,00 comparado com US$ 91.000,00 da indústria automobilística, US$ 220.000,00 da indústria química, US$ 100.000,00 da pecuária e, US$ 60.000,00 do turismo.

Do ponto de vista ambiental, o que está se discutindo principalmente é a possibilidade ou não de utilização dos apicuns e salgados para implantação de empreendimentos de carcinicultura, uma vez que por Lei a totalidade dos mangues é considerada como um recurso de preservação permanente. O último levantamento feito por Kjerfve & Lacerda, em 1993, para mensurar a área de mangue no Brasil estabeleceu a existência de 1.376.255 hectares, sendo que mais de 80% estão localizadas nos Estados de Maranhão, Pará e Amapá. Por sua vez, a última estatística publicada pelo IBAMA da produção pesqueira nacional (1999) menciona uma produção da pesca extrativa de 422.173 toneladas de pescado (peixes, crustáceos e moluscos). Guardadas as diferentes datas da informação, houve uma produtividade média nacional equivalente a 307 kg de pescado por hectare. O Estado de Maranhão, que possuía 500.000 ha de mangue, apresentou uma média de 13,2 kg de camarão/ha de mangue e 78 kg de pescado/ha de mangue. Extremamente menor que a produtividade média nacional obtida pelo cultivo de camarão em áreas adjacentes aos mangues, de apicuns ou salgados, qual seja 5.000 kg/ha. E mais ainda, ao se comparar a receita ao nível do produtor obtida em um hectare de cultivo de camarão nestas áreas, com as de outras atividades agropecuárias para gerar esta mesma receita, seria necessário o desmatamento de 186 ha na floresta amazônica para a implantação da bovinocultura e 37 ha no cerrado com o plantio de soja (tabela).

Será que o impacto ambiental do uso de um hectare de apicum é maior que 186 ha da floresta amazônica, ou de 37 ha do cerrado? Então, que vida preservar? Vamos proteger os mangues, vamos utilizar suas áreas adjacentes, os espaços de apicuns e salgados para o cultivo de camarão, mesmo com os prejuízos ambientais preconizados pelos ambientalistas, mas vamos contribuir para a redução das desigualdades sociais, principalmente do Nordeste, praticando uma carcinicultura sustentável e possibilitando a geração de renda, empregos e divisas para o País.