Por: José Eurico Possebon Cyrino
Dep. de Zoologia da ESALq – USP
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Dizer que a aqüicultura brasileira está em expansão e vem crescendo de modo acentuado nos últimos anos já se tornou lugar comum. Este crescimento da aqüicultura como agroindústria, exigiu a organização, a especialização e a melhoria da qualidade do segmento da indústria da alimentação animal dedicado à manufatura de rações para organismos aquáticos. Este crescimento tem sido tão expressivo, que no momento esta indústria se prepara para acolher especialistas de renome internacional que devem atender como participantes ou palestrantes o 1º Simpósio Brasileiro de Tecnologia de Extrusão Aplicada a Rações para Animais e Aqüicultura – I SEXTRAAQ, que ocorrerá de 9 a 12 de março próximo, na cidade de Águas de Lindóia-SP, sob organização do Departamento de Tecnologia de Alimentos, com apoio de várias agências financiadoras, como FAPESP, CNPq, CAPES e FAEP-UNICAMP, entre outras. Por outro lado, alguns setores da aqüicultura brasileira continuam a advogar a prática de uma piscicultura baseada na “reciclagem” de subprodutos agroindustriais, motivando a fabricação caseira dos alimentos para peixe. Bem, não temos nada contra o sucesso que alguns piscicultores podem lograr com esta prática. Entretanto, cremos que este sucesso é apenas relativo. O uso de rações comerciais é ainda mais vantajoso e lucrativo, e vamos tentar convencer o leitor da veracidade de nossa afirmação.
Os argumentos mais utilizados em favor da prática de fabricação caseira, ou de baixa tecnologia, de rações de peixe, são que estas rações são mais econômicas, e que o produtor sabe exatamente o que está colocando na ração. Infelizmente, estes argumentos não passam de falácias. Acredita-se que fabricando rações na propriedade, elimina-se custos administrativos – pessoal, compras, venda, despachos, etc., que incidem sobre as rações comerciais. Está certo que um produtor não tem o custo administrativo de um grande fabricante de ração. Mas como os grandes fabricantes produzem centenas de toneladas de ração por dia, conseguem diluir este custo administrativo de modo drástico. Assim, apenas os custos com remuneração da mão-de-obra que incidem sobre a manufatura caseira de ração já são muito maiores que os custos administrativos totais de uma indústria especializada.
Certo está também que o produtor sabe exatamente o que está colocando na ração. Ele sabe que está colocando farelo de soja, fubá de milho, farelo de trigo, possivelmente uma pré-mistura vitamínica e mineral, etc. Ele sabe quanto de cada ingrediente está colocando, ou deve colocar. Mas ele não tem a mínima idéia da qualidade exata destes ingredientes.
Análise Bromatológica
Vamos tomar como exemplo o farelo de soja. Se consultarmos 3 diferentes tabelas de composição de alimentos, muito provavelmente vamos encontrar 3 valores diferentes para os teores de proteína bruta deste alimento, geralmente variando entre 40 e 46%, não importa quão confiáveis sejam as tabelas. As variações de metodologia de análise, de obtenção do farelo de soja, e a própria origem da soja utilizada na obtenção deste farelo determinam estas variações. Como as tabelas apresentam valores médios de composição centesimal (ou bromatológica, ou química) dos ingredientes, não conseguem eliminar estas variações.
Para que um produtor possa “saber exatamente” o que está colocando em sua ração, deve proceder à análise bromatológica dos lotes de ingredientes que está utilizando, ou seja, proceder ao controle de qualidade da matéria prima utilizada no processo de produção do alimento. Uma análise bromatológica simples custa em média R$ 45,00. Proceder à análise bromatológica dos lotes de alimentos, ao controle de qualidade, é prática de rotina nas fábricas de ração, o que torna este custo muito diluído, e garante o uso de ingredientes de alta qualidade. Custa comparativamente muito menos para uma fábrica de ração amostrar e analisar um lote de 100 ton. de um alimento qualquer, que analisar um lote de 2 ou 3 ton. do mesmo alimento que um produtor pode conseguir.
Não podemos nos atrever a estender esta discussão para os aspectos de controle das qualidades sanitárias dos alimentos – exames toxicológicos e organolépticos, impossíveis de serem realizados pelos piscicultores, e prática corrente nas fábricas de ração.
Estoque
Este raciocínio nos traz outro assunto muito mais simples, chamado “poder de barganha”. Os piscicultores que fabricam sua própria ração não têm condições de trabalhar com estoque de ingredientes para ração, e por isso não conseguem reduzir seus custos de produção comprando e estocando matéria prima nos picos de safra, onde os preços estão mais baixos. A situação econômica atual desencoraja a imobilização de capital, obrigando também as fábricas de ração a trabalhar com estoques bastante reduzidos, tirando pouco proveito de sua capacidade de armazenamento. Entretanto, o volume de ingredientes movimentado por uma fábrica é incomparavelmente maior que o volume movimentado por um piscicultor, o que dá às fábricas poder de barganha para conseguir melhores preços e prazos de pagamento mais elásticos na compra dos ingredientes para manufatura de rações, barateando seus custos de produção.
Devemos lembrar ainda que as fábricas de ração estão sujeitas à fiscalização dos órgãos competentes do Ministério da Agricultura, e somente podem comercializar produtos devidamente registrados, rotulados, e que obedeçam às especificações e exigências legais do mercado. Se um lote de peixes em criação não apresenta desempenho zootécnico satisfatório, e está sendo alimentado com uma ração comercial, o piscicultor pode e deve enviar uma amostra do produto a um laboratório de análises bromatológicas. Comprovada a adulteração, ou que os níveis de garantia do produto estão abaixo do recomendado (registrado e estampado no rótulo da embalagem), o piscicultor deve recorrer aos órgãos de defesa do consumidor, denunciar o fabricante da ração ao serviço de fiscalização do Ministério da Agricultura, e exigir o ressarcimento de seus prejuízos. Em 100% dos casos ele vai obter ganho de causa.
Aqui no Departamento de Zootecnia da ESALQ-USP, já tivemos oportunidade de encaminhar ao nosso laboratório de bromatologia algumas amostras de rações comerciais para análise, tentando dirimir dúvidas de piscicultores a respeito da qualidade nutricional dos produtos que estavam usando.
Os resultados que obtivemos mostraram que estes produtos têm teores de nutrientes geralmente acima das especificações do rótulo das suas embalagens. É claro que algumas discrepâncias e deficiências foram também detectadas, mas nada que pudesse afetar significativamente a qualidade ou influenciar de modo drástico o desempenho dos animais que pudessem estar sendo alimentados com estes produtos.
Achamos oportuno lembrar apenas que as análises que efetuamos não cobrem a “nutrição fina”, ou seja a suplementação mineral, vitamínica ou teores de aminoácidos das rações. Deficiências de vitaminas são os principais problemas encontrados nas rações comerciais no Brasil. Entretanto, os problemas nutricionais causados pela deficiência de vitaminas nas rações apresentam uma sintomatologia muito clara, e o diagnóstico destas deficiências nutricionais prescinde das análises laboratoriais. Em geral, apenas quando as deficiências são detectadas através da sintomatologia, procede-se a uma análise dos produtos em laboratórios especializados.
Finalmente, gostaríamos de discutir o aspecto da qualidade dos produtos em função do nível de tecnologia empregado na sua manufatura. O processo de produção de rações comerciais envolve basicamente os seguintes passos: formulação, moagem, mistura, granulação, secagem, empacotamento e distribuição.
O uso dos computadores pessoais ou calculadoras de grande capacidade permitem tanto rações comerciais como “caseiras” sejam formuladas de maneira precisa e a custos mínimos. Entretanto, a capacidade dos produtores comerciais em executar os processos de moagem, mistura, granulação e secagem é muito superior. Produtores comerciais conseguem trabalhar com partículas alimentares (não confundir com tamanho do grânulo ou pellet) entre 0,5 e 0,8 mm, que são os ideais para peixes, bem como misturar mais homogeneamente as rações, usando misturadores horizontais de grande capacidade, o que vai garantir uma matéria prima para granulação de qualidade superior. Rações comerciais são granuladas através de dois processos: pelletização ou prensagem, e extrusão.
Pelletização e Extrusão
Na prensagem, conduzida a seco, o uso de condicionadores a vapor promove a cocção parcial do alimento, iniciando o processo de gelatinização do amido, facilitando a prensagem e garantindo maior estabilidade aos grânulos. O calor gerado pelo atrito no processo de prensagem propriamente dito melhora mais ainda a qualidade da cocção do alimento, gelatiniza praticamente todo o amido, e produz grânulos mais palatáveis e de melhor digestibilidade que aqueles produzidos nos processos caseiros.
Na extrusão, conduzida com a adição de água, além da pré-cocção conseguida no condicionamento a vapor, a geração de calor pelo atrito da rosca com as paredes do canhão extrusor, promove a ebulição da água adicionada ao processo, produzindo o efeito de uma panela de pressão ao autoclave. Este efeito leva à cocção completa do alimento, garantindo uma digestibilidade de quase 100%, e aproveitamento total pelos peixes. Este efeito ainda praticamente esteriliza o alimento, eliminando totalmente a contaminação bacteriana, garantindo alto grau de sanidade à criação. Finalmente, os grânulos são resfriados rapidamente e aprisionam bolhas de ar no seu interior, adquirindo menor densidade e flutuabilidade na água. Isto permite monitoramento completo do consumo de alimento, eliminando sobras e acúmulo de resíduo nos tanques ou no ambiente, garantindo assim maior economia, melhor controle da qualidade da água e menor impacto e poluição ambientais.
Tentamos mostrar com estes argumentos que o uso de rações comerciais em aquicultura é muito mais vantajoso. A tabela apresenta um exercício de raciocínio rápido e conclusivo sobre nossa argumentação.
Se estamos determinados a crescer e transformar nossa aquicultura em uma grande agroindústria, a adoção de rações comerciais é a condição necessária para nossa arrancada.