Ranavírus: Uma ameaça para os ranários comerciais

No início de dezembro de 2002, sem que se soubesse as causas, começaram a ser observadas mortalidades maciças nas baias de um grande ranário paulista. Num primeiro momento, as mortes ocorriam somente entre as rãs maiores, com pesos que variavam de 350 a 450 gramas. Com o passar dos dias, entretanto, rãs de todos os tamanhos também passaram a ser afetadas pela doença desconhecida, que ao final de dezembro já havia conseguido dizimar mais de 20 mil rãs, sem antes deixá-las infladas, com mudanças comportamentais e sem nenhuma coordenação motora.

Um dos proprietários do ranário, que pediu para não ser identificado, não tem dúvidas de que seu estabelecimento não é o único a conviver com essa doença. Segundo ele, por várias vezes ouviu relatos de mortalidades por doenças que não puderam ser identificadas. Após tentativas inúteis para conseguir diagnosticar ou mesmo entender o que estava acontecendo, e diante dos prejuízos que se somavam dia após dia, o ranário procurou ajuda junto ao veterinário José Di Fábio, do J. F. Laboratório de Patologia Animal (e-mail: [email protected]), com a sua experiência de 30 anos trabalhando junto a indústria avícola.

 

José Di Fabio contou à Panorama da Aqüicultura que visitou o ranário pela primeira vez em 23 de dezembro. Logo na sua chegada mediu a temperatura da água e das rãs, percebendo que estavam normais, ao redor de 26oC, medida com termômetro infravermelho na região do abdômen. As rãs doentes, no entanto, apresentavam temperaturas bem mais baixas, 21 a 23oC, morrendo logo em seguida. Naquele mesmo dia, algumas rãs foram sacrificadas e necropsiadas no local, enquanto outras foram levadas ao laboratório para serem detalhadamente estudadas. Além disso, foram também colhidas amostras das rações e das águas dos reservatórios e das baias mais afetadas.

Os exames bacteriológicos de água não constataram nenhum grau de contaminação significante, ou mesmo Salmonelas e Clostridios que pudessem estar diretamente correlacionados ao quadro patológico encontrado. Como havia suspeita de um processo tóxico, cogitou-se a presença de pesticidas organoclorados, organofosforados ou chlopyrifos, citados na literatura como alguns dos responsáveis pela maciça diminuição da população de anfíbios nos USA, mas nada ficou comprovado.

Rações de diferentes fases da criação foram também submetidas a análises bacteriológicas para Salmonelas e Clostridios. A ração utilizada durante o início do problema também foi analisada para micotoxinas. Segundo Di Fábio, nada foi detectado em nenhuma destas amostras.

Vírus

Ao serem necropsiadas, as rãs infladas apresentavam pulmões hemorrágicos, repletos de ar, bem como a cavidade abdominal. Os fígados apresentavam lesões variáveis, algumas vezes pálidos e consistentes, outras aumentados, congestos e friáveis. Os rins algumas vezes apresentavam-se aumentados e congestos, assim como os baços. Isto, segundo Di Fabio, denotava uma característica de agressão severa por algum agente tóxico ou algum agente etiológico de alta virulência, dada a grande mortalidade, e alta patogenicidade, dado ao número elevado de animais doentes.

Os exames histopatológicos ficaram a cargo do Dr. Edson Luis Bordin, e seus achados, principalmente dos fígados, sugeriam uma agressão tóxica ou um agente viral do sistema hematopoiético (imunodepressor). Com a sua experiência como patologista aviário, Di Fabio, logo na primeira visita, indicou um potente antitóxico, o Mercepton, muito utilizado em casos de intoxicação em avicultura, sem no entanto obter sucesso. Com a ajuda de uma fábrica de ração, foi possível administrar um alimento enriquecido com metionina, colina e vitaminas, com objetivos antitóxicos, e ainda penicilina contra algumas bactérias como Streptococcus e Clostridios. Porém, após uma redução das mortalidades nos primeiros dias do uso da ração, as mesmas voltaram a crescer, após alguns dias, aos níveis anteriores.

Após consulta ao Frog Hospital e ao Tropical Medicine Center, na Austrália, através do Dr. Richard Spears, foi levantada a hipótese da presença de um Ranavírus, do grupo Iridovírus. “Foi sugerido que colhêssemos mais material de baço para exames histopatológicos”, disse Di Fábio. E foram justamente essas análises que trouxeram ao patologista a certeza de que realmente estava diante de uma agressão viral, dada a intensa depleção do tecido linfóide e necrose parenquimal.

Diagnóstico

Os exames realizados, as consultas às bibliografias disponíveis, as tentativas de tratamento realizadas, a evolução do quadro e, principalmente, as lesões necropsiais e histopatológicas, fizeram Di Fabio acreditar que estava diante de uma virose causada por um grupo de vírus que ataca o sistema hematopoiético e o sistema linfóide das rãs, pertencente a Família Iridoviridae, ou mais sugestivamente, os Ranavírus. Considerou, porém, a necessidade de um isolamento para que fosse possível uma melhor identificação do agente e até mesmo o desenvolvimento de uma vacina.

Segundo a literatura, os ranavírus são muito resistentes em meio ambiente (mais de 700 dias) e na água (100 dias), sobrevivendo melhor no inverno, residindo nos fundos das lagoas ou tanques. Segundo o patologista, o período de incubação é de 7 a 20 dias e o curso da doença, é de 5 a 7 dias, quando ocorre a morte. A transmissão principal se dá pela água, podendo também ser transmitidos por pássaros e fezes de peixes contaminados. A imunidade, contudo, é alta para os girinos.

As medidas profiláticas são até agora desconhecidas, sendo recomendado o uso de glutaraldeído para desinfecção dos criatórios, até que uma vacina possa ser desenvolvida.

“Não existem estudos mais profundos acerca deste tema”, disse o patologista. “Primeiro porque a maioria dos diagnósticos se referem às rãs selvagens e suas relações com o meio ambiente, não tendo sido encontrado nenhum relato de ranavirose em criações comerciais. Por outro lado, há esforços isolados em desenvolver uma vacina contra Ranavírus em peixes e anfíbios, mas ainda está em fase experimental. A única referência encontrada, diz respeito ao uso de glutaraldeído nos ranários como forma de higiene e desinfecção. O uso do produto na avicultura vai de 400 a 800 ppm, ou um litro de Produto a 44% por 500 a 1000 litros de água, que deve ser pulverizada nos ambientes previamente lavados com detergentes”.

Biossegurança

Quando agentes patogênicos tão virulentos e de alta transmissão e contágio são descobertos, medidas de biosseguridade se fazem tremendamente necessárias: o isolamento da propriedade, dos galpões afetados, uso de roupas e botas descartáveis, desinfetantes ativos, e, principalmente, evitar a entrada e saída de animais de propriedades suspeitas. Desde que ainda não existam vacinas específicas contra este vírus, estas medidas gerais, pelo menos podem evitar o contágio de uma propriedade ou região.

Discreto em suas colocações, o proprietário do ranário insiste na suspeita de que o mesmo problema por que está passando, também está acontecendo em muitos ranários espalhados pelo Brasil. Até porque, em seu ranário entraram rãs de outros estabelecimentos localizados em diferentes estados. Na sua opinião, é preciso que sejam criadas oportunidades para que o assunto seja discutido, pois é possível que esse problema esteja causando danos sérios no atual momento da ranicultura brasileira. É difícil, segundo ele, lidar com patologias novas numa atividade zootécnica emergente, como é o caso da ranicultura. É um momento onde a união deve prevalecer, pois não foram poucos os casos em que os vírus causaram prejuízos em atividades aqüícolas, da mesma forma que também não são poucos os casos onde a pesquisa e a união dos produtores conseguiram dar a volta por cima, saindo ainda mais fortalecidos das epidemias.