Tem gato na tuba – Editorial #197


Estórias das estradas carroçáveis do Vale do Jaguaribe

Jomar Carvalho Filho
Jomar Carvalho Filho

Dirigindo num dia ensolarado de junho pelas estradas carroçáveis do Vale do Jaguaribe, no Ceará, dava pra ver, nas propriedades que margeavam o caminho, o belo espetáculo dos aeradores trabalhando, espalhando a água pelo ar. Lindo de ver e saber que ali a riqueza estava sendo gerada com trabalho e tecnologia, uma mudança bem-vinda no perfil econômico da região. Um sentimento bom de estar onde a produção de camarão vicejava diante dos meus olhos. E, modéstia às favas, uma sensação de recompensa profissional para quem dedicou a maior parte da vida a tornar a aquicultura uma atividade popular e digna, como as demais que estão no campo.

No entanto, algo me intrigou naquele cenário. Por que tantas propriedades mantinham os aeradores ligados naquela altura do dia? E não era uma ou duas. Muitas passavam diante dos meus olhos, e eles estavam lá, ligados, espalhando água pelo ar. Alguma emergência? A aeração intensa seria a derradeira tentativa de salvar uma safra? Muitas coisas passaram pela minha cabeça. 

Mas os dias estavam lindos, ensolarados, e a fotossíntese na certa estava a mil, com algas bombando oxigênio. Quem, de sã consciência, jogaria dinheiro fora mantendo aeradores ligados àquela hora do dia, se algo muito sério não estivesse acontecendo? 

Para minha surpresa, continuando as visitas na tarde do dia seguinte, notei que em muitas propriedades também haviam “esquecido” de desligar os aeradores. Comentei com um trabalhador, que sorriu dizendo: “é gato”. Gato? Como isso? Finalmente a ficha caiu. Aquela turma não estava pagando pela energia. 

Sem meias palavras, gato é furto de energia elétrica. E quem faz o gato não está apenas passando a perna na concessionária e se beneficiando. Está também prejudicando, e de várias maneiras, os demais produtores que pagam pela energia que consomem. Dali em diante me dediquei a entender o impacto do gato na produção e na comercialização. 

Conversei com vários produtores, que pediram para não serem identificados, e não foi difícil entender. Em algumas regiões, o gato está presente em até 80% das fazendas. A prática está disseminada. 

E é fácil entender o impacto. Camarões de 10 gramas têm um custo de produção ao redor de R$ 13,50 por kg, e os custos da energia, em média, representam 25% desse valor. Portanto, quem faz gato tem um custo ao redor de R$ 10,00. E, de quebra, por deixar ligados os aeradores, tem o benefício de produzir mais ciclos anuais.

Na hora de comercializar, o produtor que paga energia e precisa ser remunerado, não pode vender abaixo de R$ 15,00. Já os adeptos do gato fazem a festinha dos compradores, vendendo o camarão a R$ 12,00 ou R$ 13,00, um valor ainda abaixo do custo real de produção. Os compradores não são bobos, e descobriram isso faz tempo. Simplesmente dizem que “tem quem venda mais barato”, e viram as costas, encostando na parede os produtores que pagam pela energia. Os donos dos gatos, além do crime de furto de energia, praticam a concorrência desleal. Fazem mal a eles próprios e aos outros. 

Ficou fácil entender por que temos visto tanta gente reclamando dos preços baixos, colocando a culpa nas importações e blá blá blá. Mas o gato está miando, e ninguém fala nada.

Outra coisa: podem imaginar o impacto que teria entre os consumidores se a grande imprensa noticiasse isso? O consumidor não é bobo, e sabe que o prejuízo com os furtos de energia é compartilhado por toda a sociedade. E é bom nem pensar em exportação de camarão produzido com gato.   

E tem mais: inevitavelmente essa prática vai acabar levando o produtor a ficar refém dos grupos que administram esse negócio criminoso. E não vai demorar para que sejam cada vez mais extorquidos. Quem mora no Rio de Janeiro sabe bem como agem as milícias. Começam com energia, depois é a vez da TV a cabo, internet, botijão de gás, drogas, e por aí vai.

A produção de camarão no Vale do Jaguaribe está verdadeiramente linda, e o leitor terá a oportunidade de conhecer um pouco no artigo que publicamos nesta revista. Mas a sua sustentabilidade está por um triz.

Boa leitura a todos.