De leitor para leitor: Um produtor de tilápias no Município de Vila Boa, em Goiás, e assinante da Panorama da AQÜICULTURA relata de forma bem humorada alguns fatos que muito têm a ver com o cotidiano dos piscicultores brasileiros.
Por: José Álvaro da Costa Donato
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Era uma vez, em determinado país deste nosso continente, um digno e descansado agricultor, que conseguiu, a exemplo de seus ascendentes, criar a sua família de forma pacata e honesta, plantando, unicamente, batatas. Enfrentando chuvas e estiagens, altas e baixas de preços, viu os seus filhos crescerem, estudarem e constituírem família, tudo à custa da boa e velha batata.
Um destes filhos, o mais ousado, talvez o mais empreendedor da família de batateiros – e na visão do patriarca, o mais teimoso – por não mais aguentar ver a sua família trabalhando duro e rezando aos santos de plantão para que intercedessem junto aos céus por uma boa safra, teve certo dia uma ideia: se no nosso país o governo vem dando uma atenção especial à piscicultura, por que não partir para este outro modelo de cultivo? Afinal, depois de tanto esforço lutando com a terra, seus antepassados que fizeram a vida graças às batatas não haveriam de ficar aborrecidos. Além do mais, na sua região obteria todo o apoio necessário à nova empreitada. O que dizer então do Governo Central, que nos últimos tempos havia criado uma Secretaria Especial voltada única e exclusivamente para os peixes?
Nosso empreendedor quase não dormia direito pensando: já que o clima aqui na Província é o melhor possível, por que não tentar arrendar a represa do vizinho? Afinal, essa barragem há décadas havia sido construída por um político local, mas nenhuma utilidade apresentava nos dias atuais. Ali, pode-se dizer, nunca se produziu um quilo de pescado sequer. Na época em que foi construída, a barragem reunia em suas margens belas mulheres em grandes festas patrocinadas pelo antigo dono, cujos filhos, na linha do pai, a utilizavam apenas para passeios de jet-ski com jovens “muchachas”. Hoje, abandonada, a quarentona represa serve de deleite, apenas, à capivaras e garças, e já não se ouvem os gritos estridentes das moçoilas ou o barulho dos motores das embarcações.
Interessado na sua nova empreitada, o rapaz, para orgulho – e ao mesmo tempo decepção – do velho pai, passou a pesquisar e colecionar toda sorte de livros e revistas sobre piscicultura. Fez cursos, frequentou seminários e congressos, e participava até mesmo de uma Lista de Discussão na internet sobre o assunto, onde muito aprendeu com especialistas, produtores, ambientalistas, biólogos, veterinários, engenheiros de pesca, curiosos e piscicultores iniciantes como ele. Na internet conheceu gente que realmente ama a piscicultura e que vive disso, também gente que tem a piscicultura apenas como “hobbie”, e ainda os que só estão no negócio por acreditarem firmemente no país.
Seu entusiasmo cresceu ainda mais, quando viu aquela Secretaria Especial ser transformada num Ministério, unicamente voltado para os peixes – para inveja dos bovinos, equinos, caprinos, suínos e galináceos – que nunca na história daquele país haviam tido tamanha deferência.
Muito estranhou ao ver a frente da pasta administradores sérios, mas sem nenhuma intimidade com o tema. Gente que nunca pescou e que não sabe, sequer, a diferença entre tilápias e sardinhas. Quando lhe explicaram que isso tinha a ver mais com a política do que com os peixes, simplesmente fingiu entender. Decepcionado mesmo ficou, quando viu um estranho peixe, dizem até que de olho rasgado, vir de outro continente para competir nos freezers e bancadas de peixarias, com o produto nativo, fruto do incansável trabalho dos aquicultores do seu país.
Com a implantação da Semana do Peixe viu-se uma vez mais animado, e disse: agora vai! De tão boa ideia, essa tal Semana bem que poderia ocorrer a cada semestre, depois a cada trimestre e quem sabe no futuro, a cada mês, até se transformar no Dia do Peixe. Quem sabe um dia será assim? Pensou.
Havia descoberto que todo o peixe consumido nas cidades mais próximas à sua Província vinha de criatórios localizados a mais de cem quilômetros de distância. Ouviu de técnicos e gerentes de bancos, que o apoio do Governo Central à aquicultura é irrestrito e que anualmente até sobram recursos. Só não entendia por que sobrava tanto dinheiro e por que os piscicultores preferiam fazer uso de seus próprios recursos. Se o seu velho pai tivesse a mesma chance com as batatas, certamente não a perderia.
Com as bênçãos e o apoio do velho, resolveu, finalmente, colocar em prática tudo o que havia começado a alinhavar para montar o seu negócio, mas antes teria, ainda, que avaliar os gastos com insumos. Checou os tanques-rede, contatou produtores, promoveu cursos para dois vizinhos dos mais interessados e que seriam seus futuros funcionários. Não teve problemas com o atual proprietário da fazenda vizinha, uma vez que o político, hoje aposentado, já não tinha “aquele gás” e seus filhos não queriam mais saber de roça. A represa, portanto, poderia ser arrendada por um valor razoável, desde que se comprometesse a manter as suas características originais. Faltava, somente, contatar o fornecedor de ração; e foi então, nesse momento, que o nosso destemido empreendedor começou a perder o sono. Passou dias e noites apavorado. Não conseguia entender o porquê de a ração para tilápias ser tão cara no seu país! E se trocasse de espécie? Outro peixe comeria menos? Como num país que possui até Ministério da Pesca a ração para peixes poderia corresponder de 70 a 80% dos seus gastos? E se pudesse alimentá-los com as sobras da colheita da família? Não seria nada mau, em verdade. Momentaneamente os custos quase o fizeram desistir, mas ao se aconselhar com o seu bom e velho pai escutou: meu filho, não se esqueça que você é um batateiro e um batateiro não desiste nunca! Era tudo o que precisava ouvir para seguir adiante! Mãos à obra! Só faltava, agora, o licenciamento. Coisa simples, pensou. Afinal, estava num país de incentivos à piscicultura.
Primeiro passo, contatar a administração do seu Município. Depois, o Governo da sua Província e por último, se necessário fosse, o Governo Central. Estranhou, porém, quando na Secretaria de Agricultura de sua região lhe perguntaram, conhecendo a sua família, se tilápia era uma nova variedade de batata. Estranhou, também, ao tentar contatar o Governo da Província, que não existia sequer um 0800 ou endereço de e-mail para um serviço de atendimento ao cliente à distância, através dos quais pudesse sanar suas dúvidas. A solução foi apelar para os DDDs disponíveis. Depois de diversas chamadas foi finalmente orientado a reunir os documentos relacionados no site do Governo da Província e se dirigir, pessoalmente, à capital, distante cerca de 400 km do seu Município. Apesar de tudo, esse não seria o obstáculo que o faria desistir.
Ocorre que a coisa não era tão simples assim. Antes de licenciar a sua atividade, teria que requerer a outorga das águas e o licenciamento da barragem arrendada. Um total de 53 documentos, acreditem, alguns até repetidos para cada fase da burocracia. E teria, ainda, que pagar por isso.
Depois de três ou quatro viagens à capital, no período de quase um ano, quando sempre havia alguma nova exigência – isso quando tinha a sorte de encontrar o único funcionário habilitado a lhe prestar informações precisas – foi-lhe aconselhado buscar uma empresa de consultoria, para que esta administrasse a sua solicitação. Com isso, teria, obviamente, que desembolsar um pouco mais que o previsto. Não entendia como encontrava toda aquela dificuldade para usar uma represa que durante quase cinquenta anos serviu apenas ao divertimento de gente que não produziu sequer um quilo de alimento e de quem nunca havia sido cobrado um tostão sequer.
Onde estavam as tais políticas de incentivo, tão propaladas pelo Governo Central? E os bilhões na moeda local, destinados aos que se arriscassem na atividade? Pela primeira vez sentiu-se só. Teria que desenvolver a sua piscicultura na ilegalidade, a exemplo de muitos com os quais havia trocado idéias antes? Não! Afinal não foi assim que o seu pai lhe havia educado. Almejava fazer a coisa da forma correta, com honestidade. Quem sabe pagando os impostos, as taxas, e reunindo aqueles “poucos” documentos, pudesse um dia, com o apoio de São Pedro – padroeiro dos que com peixe labutam –começar o seu trabalho e colocar em prática o seu sonho.
Passaram-se três longos anos e até agora, acreditem, não conseguiu o nosso incansável sonhador a autorização definitiva para o seu projeto. Agora, já quase “jogando a toalha”, aproveitou a visita de seu melhor amigo, às margens da “quarentona” e na presença do seu velho pai, para desabafar sobre as dificuldades que vinha encontrando há anos, apenas porque queria tocar seu sonho dentro da legalidade. O amigo de infância ouvia silenciosamente as suas lamentações e o único que fazia era balançar a cabeça de um lado a outro.
Em determinado momento da conversa, o interlocutor quase não acreditando em tudo que havia ouvido, coçou a cabeça, entreolhou o velho patriarca, deu dois tapinhas no ombro de nosso herói e lhe disse:
– Quer saber de uma coisa meu amigo? Vá plantar batatas…!